Carrie-Anne Moss e Keany Reeves em Matrix Ressurrections

Créditos da imagem: Warner Bros./Divulgação

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Matrix Resurrections poderia se chamar Matrix Remix – e isso é ótimo

A julgar pelo primeiro trailer, quarto filme da franquia condensa e moderniza os três anteriores

15.09.2021, às 20H32.

Pílulas, gatos pretos, coelhos, espelhos, Neo, Trinity e Morpheus. O grande mérito do primeiro trailer de Matrix Resurrections, lançado na última semana para deleite dos fãs da obra das Irmãs Wachowski, é se valer destes e de outros elementos familiares para apresentar uma trama que promete revisitar tudo de apaixonante visto em Matrix (1999), Matrix Reloaded (2003) e Matrix Revolutions (2003). Isso, ao mesmo tempo em que descarta o que não funcionou neles; ou, para colocar em um termo mais apropriado, o que fez com que a opinião crítica sobre a saga caísse vertiginosamente de um filme para o outro, ainda que ela se mantenha firme como uma das trilogias essenciais dos últimos 30 anos.

Considerado um dos filmes mais influentes de todos os tempos, seja pela sua sátira mordaz da sociedade capitalista no final do século XX, seu uso único de efeitos visuais ou por sua reinvenção filosófica da típica jornada do herói, Matrix estabeleceu um parâmetro alto para a expectativa que recaiu sobre sua sequência, dividida em duas partes e lançada quase quatro anos depois na forma de Reloaded e Revolutions. O resultado foi uma recepção não tão elogiosa para os dois filmes mais recentes, que tiveram sucesso em expandir e aprofundar a mitologia e o universo criado pelas Wachoswki, mas acabaram se afastando da objetividade e sagacidade do argumento inicial que fez do original um clássico moderno.

O que a primeira prévia de Resurrections sinaliza é que Lana Wachoski aproveitou esse retorno à franquia não só para resgatá-la, como também afiná-la; reconstruir e atualizar o comentário social que predominava no filme original de forma diretamente entrelaçada com os aspectos fantásticos e o espetáculo visual e de ação que dominariam as sequências. Ao abraçar a iconografia das pílulas azuis e vermelhas e ressiginificar as metáforas com coelhos como base do novo filme, a cineasta exalta as grandes marcas deixadas pelo original. Ao mesmo tempo, ao destacar elementos de Reloaded e Revolutions como a divisão de castas representada pelo Merovíngio, o destino de Neo na Cidadela das Máquinas e especialmente a natureza cíclica da Matrix, que permite a introdução de novos rostos mesmo que em papéis antigos sem prejudicar a trama, reafirma a importância de entender a franquia como uma só história.

Sim, porque não é raro que pessoas escolham ignorar dois dos três filmes da saga, mesmo quando eles carregam não só essenciais expansões à mitologia criada pelas Wachowski, como mais da metade do desenvolvimento temático mais importante para as cineastas: o arco do amor entre Neo e Trinity. Apresentada no primeiro filme, essa relação só assume sua real importância mediante os sacrifícios trocados pelos personagens em Reloaded e Revolutions, quando fica claro que é por meio dela que Neo aceita seu papel na luta da humanidade contra as máquinas. É uma alegoria central a um dos subtextos mais ricos da franquia, sobre a aceitação da identidade e como esse processo é sempre facilitado por esse sublime sentimento. Além disso, é essencial para a interpretação do filme como alegoria da experiência transsexual; análise que ganhou ainda mais importância depois das transições de gênero de Lana e Lilly.

"Há um novo olhar crítico sendo lançado sobre o trabalho de Lana e meu, por meio da lente da nossa transsexualidade. Eu acho que isso é legal, porque é um excelente lembrete de que a arte nunca é estática. E por mais que ideias sobre identidade e transformação sejam centrais ao nosso trabalho, o fundamento sobre o qual todas as nossas ideias repousam é o amor", afirmou Lilly em 2016, quando ela e Lana receberam um prêmio da associação LGBTQIA+ GLAAD, por seu trabalho de representatividade em Sense8. Quando o trailer de Matrix Resurrections coloca Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II) para indicar que o amor de Neo por Trinity será o foco da nova trama, é para mostrar que a âncora emocional dos três filmes originais será evidenciada e reforçada na nova produção.

Além disso, Resurrections ainda cumpre o importante papel de reclamar para o debate progressista que sempre foi central à obra das Wachoswki uma iconografia que nos anos recentes foi apropriada por políticos e entusiastas da extrema direita. A icônica cena do filme de 1999 em que Thomas Anderson (Keanu Reeves) tem de escolher entre a pílula azul, que o manterá sob a ilusão da Matrix, e a vermelha, que o fará acordar no mundo real, passou a ser usada por apoiadores de Donald Trump, Jair Bolsonaro e outros líderes conservadores como uma defesa de discursos racistas, homofóbicos e misóginos. Recentemente, foi usada por figuras como Elon Musk, Ivanka Trump e até o ex-ministro da educação do Brasil Abraham Weintraub, como metáfora para a postura anti-vacina em meio à pandemia da covid-19. Em resposta, Lilly usou o Twitter para mandar os três irem "se f*der".

Isso tudo sem mencionar o valor pessoal da nova obra para Lana, que idealizou a trama de Ressurrections depois de perder pai, mãe e um amigo de longa data. "Eu não podia ter meu pai e minha mãe, mas de repente podia ter Neo e Trinity, que são provavelmente os dois personagens mais importantes da minha vida. Foi um grande conforto poder trazê-los de volta à vida, porque é muito fácil. Você pode olhar e dizer: 'Okay, essas pessoas morreram, mas vou ressuscitá-las'. Isso não é incrível? É simples, e é o que a arte, as histórias, fazem por nós. Elas nos confortam, e são importantes", afirmou a cineasta, durante conferência artística na Alemanha.

Assim, para ser de uma só vez um protesto, uma releitura, uma modernização e uma ferramenta de cura, o quarto filme de Matrix fará algo parecido com outros resgates de franquias clássicas que vimos nos cinemas, recentemente. Da mesma forma que se propuseram a fazer filmes como Star Wars - Episódio VII: O Despertar da Força (2015), ou Creed: Nascido Para Lutar (2015), ele recicla estruturas narrativa e grandes marcas visuais da franquia sob um novo prisma, abrindo espaço para interpretações e desdobramentos inéditos. Em Ressurrections, entretanto, o público ainda será brindado com algo que os outros dois exemplos citados aqui não puderam fazer: ter esse remix comandado por uma de suas criadoras; alguém que conhece como ninguém a matéria prima com a qual está trabalhando. Uma proposta pela qual eu, pelo menos, não hesitaria em optar pela verdadeira pílula vermelha.

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