Sala de cinema vazia

Créditos da imagem: Cinemark/Divulgação

Filmes

Artigo

2020, o ano em que tentaram matar o cinema brasileiro

Desmonte da Ancine e das políticas públicas para o audiovisual paralisaram pelo menos 700 produções

24.12.2020, às 09H00.
Atualizada em 24.12.2020, ÀS 16H21

“Sou produtor de cinema independente em São Paulo e tentei entregar um documento anteontem no escritório da Ancine na capital de São Paulo, mas a porteira do prédio informou que o escritório está definitivamente fechado. Como a informação não estava no site da agência, entrei em contato com a ouvidoria do órgão e fui informado que o escritório foi mesmo fechado. Sugiro apuração a respeito”.

A mensagem de surpresa expressa pelo produtor, enviada em novembro último, não foi o primeiro e nem será o último susto que o mundo audiovisual terá em relação ao desenvolvimento da crise na Agência Nacional de Cinema, a Ancine, órgão federal de incentivo à indústria audiovisual, hoje vinculado ao Ministério do Turismo, que, até 2018, era um modelo de eficiência e um símbolo da expansão do que a modernidade convencionou chamar de “economia criativa”.

Em 2018, o valor dos bens produzidos pela economia audiovisual no Brasil tinha sido de R$ 26,7 bilhões, superando outras indústrias relevantes, como a farmacêutica, a têxtil e a de equipamentos eletrônicos. Por ironia, esses dados foram divulgados há poucos dias pela própria agência, atestando publicamente (e até com certo gáudio) o seu fracasso. Até 2018, o crescimento do setor estava acima da média da própria economia mundial como um todo, 8,8% anuais, gerando 300 mil empregos. Em dez meses deste ano de 2020, entretanto, segundo o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, a agência liberou recursos para a produção de apenas um filme.

A pergunta inevitável é: o que aconteceu em dois anos para tamanho recuo? Que tipo de hecatombe?

É possível responder a isso, após uma leitura cuidadosa das inúmeras reportagens sobre o tema na imprensa, com uma série de adjetivos: imprudência, vaidade, ganância, ignorância, autofagia, espírito de corpo, arrivismo ideológico. Se fosse para assinalar apenas um item, seria melhor criar um novo: todas as alternativas estão corretas.

A queda

As desventuras da Ancine começaram com a imprudência. À euforia do crescimento, entre os anos de 2010 e 2015, não correspondeu um processo de modernização na capacidade de gestão, fiscalização e adaptação tecnológica do órgão às mudanças de hábitos de consumo da população. É mais ou menos como no futebol: como o time estava ganhando, não se pensou em investir na comissão técnica, na saúde da equipe e nas categorias de base para a alternância de peças. Ainda assim, foi o período em que a Ancine se tornou autossuficiente, forte, ganhou protagonismo e importância no cenário interno e externo.

O país viu a consolidação, no mercado, do crescimento do segmento de Vídeo por Demanda (VoD) - ao lado da TV paga e TV aberta, os mais importantes segmentos de consumo audiovisual, representando 20,9% do valor adicionado pela área na economia (em 2012, este percentual era de apenas 4,1%). A Ancine, entretanto, não conseguiu construir a escada política para fazer a regulamentação do setor enquanto tinha força para tanto, e hoje o disciplinamento disso está entregue à voracidade e ao casuísmo.

Estima-se que haja mais de 700 produções paradas no país diretamente por conta da situação na Ancine. Embora ainda não seja possível medir o impacto disso, algumas das principais entidades da classe audiovisual do Brasil divulgaram uma carta, no dia 15 de dezembro, na qual alertam para o fato de que “já se percebe clara deficiência nos canais de TV por assinatura de novos lançamentos de séries e dificuldades para cumprimento das cotas exigidas pela Lei 12.485/11”. Essa é a chamada Lei da TV Paga, que estabelece que canais fechados devam reservar três horas e meia do seu horário nobre semanalmente para a veiculação de produções brasileiras (metade desse tempo reservado a conteúdos de produtoras independentes).

Na contramão dessa demanda, no dia 8 de dezembro, a diretoria colegiada da Ancine, reunida, decidiu anunciar apoio, em 2021, apenas para linhas de desenvolvimento e finalização (além de recursos para ocupação de salas e animação para TV). Passou por cima de linhas de produção direta para TV (séries, filmes e documentários), além de extinguir as de comercialização e co-produção internacional para cinema, os arranjos regionais, a  produção para a TV Pública, longas-metragens e outros. O que era uma suspeita, a de que a Ancine milita despudoradamente contra o audiovisual brasileiro, confirmou-se na prática – e cinco parlamentares apresentaram na Câmara dos Deputados um projeto de decreto legislativo para tentar sustar os efeitos dessa decisão da agência de cinema.

Não há uma perspectiva clara do final desse imbróglio. Dezembro começa com mais uma descontinuidade na política cultural do país: no ministério do Turismo (ao qual todo o setor é subordinado), caiu Marcelo Álvaro Antonio e entrou Gilson Machado. É o terceiro ministro responsável pela área em apenas 12 meses. E já são cinco secretários especiais de cultura em 24 meses. 

O começo do fim

Mas isso tudo parece ter começado a se agravar muito antes, no processo que antecedeu a indicação, para a presidência da agência, do produtor Christian de Castro, atualmente réu na Justiça (além de outros sete ex-gestores de sua confiança). Em breve passagem, Castro deixou rastros de métodos heterodoxos que atravancarão por um bom tempo a área. Era homem de confiança do então ministro da Cultura de Michel Temer, Sérgio Sá Leitão (igualmente réu pelo período na Ancine e também com bens bloqueados), e a atrapalhada atuação conjunta desse grupo levou a um bloqueio burocrático na Ancine ordenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que enxergou leniência na condução de gastos exorbitantes de editais - lançados sem adequada estrutura fiscalizatória e de acompanhamento.

Para se manter no cargo, Christian de Castro impeliu a Ancine ao divisionismo e à judicialização, que acabou chegando. A Justiça recebeu mais de 200 mandados de segurança de produtoras audiovisuais contra a agência, boa parte deles sendo acatados. É a autofagia, a Ancine contra a própria Ancine, já que o órgão é formado pelos interesses comuns dos cineastas e produtores.

Finalmente, atracou o governo de Jair Bolsonaro, e firmaram pé os dois últimos adjetivos que faltavam para completar o quadro de desidratação da agência: espírito de corpo e arrivismo ideológico. O espírito de corpo se manifestou no momento em que, mesmo sendo advertidos continuamente da intenção dissimulada pelo governo de paralisar totalmente a atividade (e logo fechar a agência), os produtores do audiovisual continuam acreditando que chegaria o momento da pactuação. Confiantes de que teriam tratamento diferenciado, por serem grandes e influentes, alguns produtores taparam os olhos para a inação da Ancine e para sua política de autodinamitação.

Entre 2019 e 2020, com o ímpeto da censura cultural, o governo se convenceu de que, mais eficiente do que bater de frente com a institucionalidade e a lei, o melhor recurso para implodir a Ancine (intenção manifesta pelo próprio presidente da República em não apenas uma ocasião) era miná-la por dentro. Então, optou-se por manter indefinidamente um interino na presidência, Alex Braga Muniz, em vez de um efetivo, para fragilizar qualquer tipo de poder de veto às intenções do governo federal. Um pastor evangélico foi conduzido e reconduzido irregularmente ao cargo de diretor (a Ancine funciona com um colegiado de quatro diretores). O Ministério da Economia sequestrou recursos carimbados da agência, provenientes da taxação das empresas de telecomunicações e destinados por lei ao setor audiovisual (o chamado Fundo Setorial do Audiovisual), e a própria agência deu ordem aos bancos de fomento para interromperem qualquer fluxo de recursos para sua área.

Não satisfeitos com dois anos de absoluta irrelevância nas atividades do fomento ao audiovisual, os atuais donos do poder resolveram agora investir na fusão de duas agências públicas, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Ancine, para atender a interesses externos. O mais sarcástico é que, ao formarem um grupo de trabalho para debater o destino de um setor cuja atribuição exclusiva é da Ancine, eles deixaram de convidar justamente a Ancine para as deliberações.

Cotidianamente, a Ancine que sobrou se encarrega de despachar pastéis de vento retóricos para animar o mundo da tecnocracia, com factóides como “criação de uma câmara técnica” ou “observação do comportamento do mercado”. Na prática, o que se viu nos últimos meses foi uma vergonhosa onda de desrespeito à lei e às instituições. A agência entra numa onda fisiológica, contratando apadrinhados políticos de partidos do chamado Centrão. O problema é que o fim da Ancine, iminente, é a vitória do nada, do obscurantismo e da falta de assertividade. Não tendo nada a propor, propuseram o nada como meta.

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