Wagner Moura:
O que aconteceu
com lançamento
de Marighella
foi censura

Ator e diretor conversa com o Omelete

Eduardo Pereira | @eduperazeda Reportagem

Wagner Moura está empolgado. Aos 45 anos de idade, o ator baiano, amplamente celebrado como um dos mais talentosos de sua geração, finalmente verá seu primeiro trabalho como diretor de cinema entrar em cartaz no circuito brasileiro. Em Marighella, Moura se fez cineasta por meio da árdua missão de criar “um filme popular, que atingisse muita gente, que muita gente pudesse ver e que devolvesse ao imaginário brasileiro essa figura de resistência à ditadura”. Para isso, teve de enfrentar velhos e novos desafios, impostos não só pela estrutura precarizada da produção audiovisual nacional, como também pelo momento político altamente conservador do país – em cenário que, diante de uma cinebiografia sobre um histórico revolucionário de esquerda, corroborou até a imposição do que ele afirma ter sido censura contra o projeto.

Inspirado na biografia Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, escrita pelo jornalista Mário Magalhães, o filme de Moura recria e amarra dois momentos na vida de Carlos Marighella: quando o político, escritor e guerrilheiro comunista marxista-leninista brasileiro foi baleado e preso pelo regime militar, em 1964, e suas atividades à frente do grupo armado de oposição à ditadura Ação Libertadora Nacional (ALN), de 1968 até seu assassinato, em 1969. Mais do que discutir implicações morais e legais das ações de Marighella e de seus aliados contra os militares – o que seria até contraproducente, uma vez que a ele já foi conferida anistia póstuma, em 2012 –, o interesse do diretor é devolver ao guerrilheiro, publicamente chamado de “terrorista” e de “inimigo número um do Brasil”, a humanidade que lhe foi negada; representá-lo como uma pessoa tridimensional: pai, marido, amigo, líder, patriota. Indivíduo complexo que, sim, optou por recorrer à violência frente à violência, ecoando um debate antigo que o próprio filme traz à tona para ilustrar as diferentes perspectivas que compõem a militância revolucionária.

Em conversa com o Omelete, Moura resgatou a primeira memória ligada ao filme, datada do final de 2012. Foi quando recebeu das mãos da vereadora Maria Marighella, neta de Carlos, o exemplar da biografia redigida por Magalhães. “Maria me deu o livro e disse: ‘A gente tem que fazer um filme’. E eu queria fazer isso acontecer, porque eu queria ver um filme sobre Marighella”, lembrou. Então só ator, ele se deu conta por meio de um processo de exclusão que era o melhor nome para dirigir a cinebiografia. “A gente começou a falar: ‘Quem vai dirigir o filme? Tem que ser alguém que se conecte ideologicamente com o Marighella, que seja progressista. Era bom que fosse alguém baiano’... Aí, eu comecei a ver que eu mesmo estava ali, pingando na área”, explicou.

O roteiro veio da parceria com Felipe Braga (Sintonia) e começou a ser escrito em novembro de 2013. Às custas de muitas noites de sono – “Nas minhas insônias antes da filmagem, pensava por que eu não fiz um filme sobre o último dia da vida do Marighella”, disse Moura –, a dupla selecionou os dois momentos da vida do guerrilheiro que iriam compor o retrato proposto na trama, além de um segundo foco narrativo. “Eu queria falar dessa geração que resistiu à ditadura militar, que é uma geração muito próxima à minha; que tinha 20 ou 30 anos a mais que eu”, explicou o diretor. “E também da minha insatisfação com a maneira como essas histórias de revolta foram contadas pela narrativa oficial, sempre do ponto de vista do dominador, desde a época da colonização”.

De lá até esta quinta-feira (4), quando Marighella chegou oficialmente às salas de cinema brasileiras, passaram-se praticamente oito anos. Nesse período, a expectativa pela chegada do filme ao seu país de origem só aumentou com a estreia mundial no 69° Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 2019. Sob críticas positivas de Devika Girish, do The New York Times, de Stephen Dalton, do The Hollywood Reporter, e de Jonathan Romney, do Screen International, o longa se anunciou como uma intensa celebração à resistência, bem como um manifesto contra a onda conservadora propagada no Brasil e no mundo. Até a análise negativa de Jay Weissberg, da Variety, ainda exaltou a competência técnica das câmeras comandadas por Moura. Em uníssono, entretanto, ecoou a exaltação a um dos grandes acertos do filme: a escalação do músico e ator Seu Jorge no papel-título.

Substituto de Mano Brown como o Marighella das telonas, Jorge monopoliza a câmera sempre que está em cena, empregando uma fisicalidade dominante e assertiva que ressalta a altivez de um homem sob a mira constante de um regime fascista sanguinário. Ao mesmo tempo, seja por meio de um olhar permanentemente lacrimoso, ou nos seletos vislumbres de suavidade e leveza que lhe permite o roteiro, o astro comunica de forma imediata a vulnerabilidade do personagem; sua humanidade. Além disso, Wagner Moura explica que a escalação de um homem preto de pele escura, como é o músico, reforçou mais um aspecto da identidade do guerrilheiro que foi insistentemente negado e apagado ao longo dos anos.

“A mãe de Marighella nasceu em 1888, dia da abolição da escravidão, dia em que o último país do mundo ocidental removeu a escravidão”, ressaltou Moura. “Ela era filha de escravizados africanos, neta de gente que veio a força ao Brasil trabalhar como escravos. Essa origem de Marighella diz muito sobre quem ele era”. À época do anúncio da escalação de Seu Jorge, houve polêmica entre detratores do filme. Eles acusaram a produção de transformar, por motivos políticos, uma figura tida como branca, de sobrenome italiano, em preta, mas o diretor rebateu e segue rebatendo as afirmações: “Marighella era um homem negro, o pai dele era italiano”, disse. “Com a escalação de Seu Jorge, eu estou reafirmando a importância do fato desse homem ser preto. E eu quero dizer para as pessoas no Brasil que o Brasil teve uma figura histórica, lutador pela justiça social, pelos direitos dos pobres, dos trabalhadores, pela liberdade, pela luta contra a ditadura, que era preto”, adicionou.

Para desenvolver os temas de Marighella, Moura e Braga optaram por contrapor o guerrilheiro a diversas figuras ficcionalizadas, pensadas para representar amigos, aliados e inimigos do guerrilheiro. Na posição de principal antagonista ao personagem-título, portanto, foi colocado Lúcio (Bruno Gagliasso), um racista, homofóbico, sádico e egocêntrico policial do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo. Inspirado em Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado de polícia a serviço do regime militar que foi responsável pelo assassinato de Marighella, o personagem se apresenta intencionalmente desprovido de profundidade; um recurso usado para simbolizar uma reparação histórica pela humanidade negada ao líder da ALN. Atuando sobre a linha entre crível e ridículo, Gagliasso se esforça ao máximo para ser odiável, conseguindo capitalizar em sua aparência de galã padrão para despertar ainda mais antipatia do que seus atos hediondos na trama já fariam naturalmente. Como ressalta o cineasta: “Queria uma oposição entre o Marighella do Seu Jorge e esse homem de olhos azuis, porque pra mim isso reforça a figura do opressor branco”. Outro recurso agressivo de um filme que, conscientemente, abre mão de sutilezas para bradar contra o silenciamento histórico.

É por isso que o cineasta Wagner Moura não disfarça o largo sorriso, nem contém a empolgação que domina suas mãos e seus braços, conforme discute seu longa-metragem de estreia. Voltar a falar sobre ele após tanto tempo, o próprio diretor frisa, é um processo de “reencontro” com as memórias, as posições e os sentimentos despertados por uma jornada artística simultaneamente pessoal e pública, que passou por agressões virtuais, sanções governamentais, recusa de direitos e outras tentativas de boicote.

Marighella, de uma certa forma, sintetiza minha história com o cinema brasileiro e com o Brasil. E a minha história com esse filme é uma história muito bonita, mas muito dura”.
Wagner Moura, ao Omelete

Wagner Moura está aliviado. Desde a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) à presidência do Brasil, em 28 de outubro de 2018, pairou sobre ele e demais colegas de equipe de Marighella uma grave incerteza quanto à possibilidade de lançamento do filme no país. Ao longo de todo seu desenvolvimento, a produção foi alvo de ataques de ódio, ameaças de violência e fake news, entre outras estratégias de depreciação. Com a maior parcela dessas atitudes tendo sido perpetradas por apoiadores do candidato eleito, seria natural apostar em golpes chancelados pelo próprio governo a partir de 2019 – o que, segundo Moura, de fato aconteceu. Previsto para estrear nos cinemas brasileiros pouco tempo depois de sua exibição no Festival de Berlim, em 20 de novembro de 2019 (data do Dia da Consciência Negra), o filme teve seu lançamento adiado, segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), por ter perdido o prazo de entrega de documentação.

A papelada seria referente ao investimento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) reservado para a etapa de lançamento da produção; um apoio administrado pela Ancine pelo qual Marighella havia sido contemplado antes da entrada de Jair Bolsonaro na presidência. De acordo com a agência, para receber cerca de R$1 milhão ao qual tinha direito, a produtora do filme deveria informar a data de lançamento com ao menos 90 dias de antecedência, o que a O2 Filmes diz ter sido impossibilitada de fazer porque o contrato com a FSA ainda não estava finalizado. A alternativa foi pedir uma excepcionalidade, mas o pedido foi negado por conta de pendências relativas a outros projetos, segundo afirmou Ancine. De acordo com Wagner Moura, entretanto, os entraves burocráticos foram posicionados por má-fé pelo governo federal. “Nós marcamos uma data [de lançamento], e aí a Ancine inviabilizou a estreia do filme, mesmo. Eu não tenho nenhum problema em dizer que o que aconteceu foi censura. Justamente numa época em que Bolsonaro falava em filtragem”, afirmou o diretor.

Em janeiro de 2020, pouco depois do cancelamento da estreia de Marighella, Moura foi ainda mais taxativo em sua acusação de censura contra o governo federal. “Como grande empresa, a O2 não pode chegar e dizer que a Ancine censurou o filme. Mas eu posso”, disse ele. “É uma censura diferente, mas é censura, que usa instrumentos burocráticos para dificultar produções das quais o governo discorda”. Sobre a alegação de que a negativa da agência à excepcionalidade pedida pela produção teria sido motivada por um imbróglio financeiro envolvendo o documentário O Sentido da Vida, o cineasta ainda rebateu: "O atraso na conclusão desse filme ocorreu apenas em novembro de 2019, enquanto a negativa do pedido relativo ao Marighella veio em agosto. Ou seja, uma coisa não tem nada a ver com a outra". À época, Moura ainda esperava se ver eventualmente contemplado por esse apoio do FSA – o que, segundo ele, não aconteceu até hoje. “Nós não recebemos um tostão como produtores do filme, nunca recebi um tostão pelo Marighella [da verba prometida pela Ancine para a etapa de lançamento do filme], nem como diretor. Todo o trabalho que fizemos, fizemos porque queríamos que o filme acontecesse”, explicou.

Apesar de ser a mais emblemática, a batalha pelo financiamento de Marighella junto à Ancine foi só uma entre muitas travadas por Moura e toda a equipe da produção. “Havia já, em 2013, um início de uma onda conservadora que provou ser majoritária no Brasil. Então, financiar o filme foi dificílimo”, lembra o diretor. “Quase ninguém queria se envolver com um filme sobre Marighella dirigido por mim. Quando a gente começou o processo, eu dizia na minha cabeça: ‘Sou um artista popular, as pessoas vão querer fazer um filme comigo’. Mas não”. Segundo Moura, até empresas que tradicionalmente investem em cinema recusaram colaborar com a produção por considerá-lo um “petralha”. “Filmamos com muito pouco dinheiro. O filme existe graças ao Fundo Setorial do Audiovisual, Spcine, Globo Filmes e alguns poucos recursos que entraram de gente que acreditou no projeto”, resumiu. “Depois, para filmar com essa pouca grana, um filme grande como Marighella é, com cenas de ação e tudo, foi muito duro também porque a gente não tinha verba”.

Com toda sua ação se passando nos anos 1960, Marighella precisa reconstruir o Brasil da época, considerando veículos, construções e figurinos adequados – desafio feito ainda maior pela escassez de recursos financeiros. “O filme, cara, eu contei: tem uma Kombi que aparece em setenta cenas. São os mesmos carros que você vai ver na trama toda, eram 15 no total. Eu não vou nem dizer mais para que as pessoas não assistam e fiquem procurando”, brincou Moura. A título de comparação, ele traçou um paralelo com a realidade que encontrou nos bastidores da terceira temporada de Narcos: México, série da Netflix na qual assina a direção de alguns episódios. “Narcos também é um negócio de época, se passa nos anos 1990”, disse. “Aí, chegando para a gravação de uma cena no aeroporto, o estacionamento tinha 120 carros. Então, os caras da produção vieram e falaram comigo: ‘Olha, me desculpa, mas desses 120 carros vocês só podem destruir 30’” .

O conservadorismo também atingiu a produção por meio de violência. “Quando a gente estava filmando, recebia muita ameaça na rede social”, lembrou Moura. “O filme recebia mensagens de ódio, os atores recebiam agressões. Até que teve um dia que, no Facebook, chegou uma galera que disse: ‘Tal dia nós vamos no set, vamos quebrar a porra toda e vamos dar porrada em todo mundo’. E aí a gente se preparou para aquilo”. A surpresa veio na forma de um gesto que encapsulou as intenções artísticas por trás de Marighella. “Nesse dia, eles não foram e o que foi bonito foi que, nessa mesma data, apareceu no set, sem ninguém chamar, a juventude anti-fascista”, recordou o diretor. “Eram 20 meninos e meninas jovens, indo lá para dizer: ‘Se vier alguém, estaremos aqui’. Filmamos o tempo inteiro sob essa pressão de saber que estávamos contando uma história que muita gente não queria que fosse contada, mas que ao mesmo tempo muita gente queria”.

Por tudo isso, é perceptível o alívio e a realização que a chegada de Marighella aos cinemas nacionais despertam em Wagner Moura. Além do atraso provocado pelo imbróglio com a Ancine, o filme foi novamente adiado em 2020, por conta da pandemia da covid-19. “Havia a possibilidade de ter lançado antes e eu disse que não. Eu não estava confortável em entrar numa sala de cinema e não ia pedir para as pessoas irem ver meu filme”, explicou o diretor. Assim, todos os esforços possíveis foram feitos para que o longa pudesse fazer sua estreia nas telonas. “Tem filmes que não me incomodo de ver na TV; eu vejo e penso que não preciso ir ao cinema. Só que tem filmes que eu começo a ver e penso imediatamente ser um filme que se presta à tela grande. E acho que Marighella é assim”, avaliou.

Wagner Moura está engajado. Para ele, as dificuldades enfrentadas pela produção de Marighella são só um sintoma da ofensiva iniciada por Bolsonaro, em 2019, contra a produção audiovisual brasileira. Foi já em seu primeiro ano no poder que o presidente anunciou o corte de 43% da verba voltada ao FSA, destinada a financiar projetos como a cinebiografia do guerrilheiro. O resultado da atitude, a longo prazo, foi a paralisação de boa parte da produção cultural que dependia de apoio financeiro estatal, sufocando a criação cinematográfica nacional. “Assim, o cinema brasileiro acabou. Não existe mais. No momento, o audiovisual brasileiro sobrevive por conta das empresas de streaming, lamenta Moura. “Isso é bom? É no sentido de que as pessoas estão trabalhando, as produções estão rolando. Isso é importante. Por outro lado, isso limita o que faz com que o nosso cinema tenha sua originalidade”. Para o diretor, concessões artísticas acabam sendo obrigatoriamente feitas quando se está em parceria com plataformas como Amazon Prime Video e a própria Netflix. “Você perde o que faz do cinema brasileiro o cinema brasileiro; essa liberdade criativa de você conseguir pensar o Brasil sem que ninguém te diga para falar sobre isso”, adicionou.

Portanto, parte da militância envolvida na produção e no lançamento de Marighella abarca também essa necessidade de reafirmar a qualidade do cinema brasileiro, além de inspirar a mudança de um cenário feito tétrico após as novas políticas do governo federal. “Lançar o filme hoje é diferente de ter lançado quando iríamos lançar originalmente, porque hoje em dia está muito claro para a maioria da população brasileira o que é esse governo, a tragédia que ele é e o contexto ao qual fazem parte esses ataques à cultura”, disse Moura. “Se você vir a história do fascismo no mundo, você vai perceber que os primeiros a serem atacados são artistas, é a universidade, é o pensamento crítico, é a ciência, é o saber. Então é natural que isso esteja acontecendo com esse governo que tem essas características saudosistas da ditadura, de torturadores e tudo mais”. Para o diretor, a mudança desse cenário se inicia com o ganho de consciência de que o conservadorismo e o fascismo sempre fizeram parte do lado mais obscuro da identidade nacional brasileira. “Bolsonaro também é Brasil. Bolsonaro é um personagem profundamente ancorado no esgoto da história do Brasil, que é escravagista, genocida, autoritário, militarista, anti-cultura, anti-pensamento crítico, medíocre”, afirmou. “É bom que, nesse momento, a gente se defronte com isso. Para que, a partir disso, partamos para um outro momento em que a gente possa sofisticar o pensamento sobre a importância da cultura”.

O atual desmonte da indústria cinematográfica brasileira é ainda mais frustrante porque se segue a um período altamente celebrado da produção nacional. Em 2019, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, ganhou o prêmio do júri no Festival de Cinema de Cannes; na mesma premiação, A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, levou o prêmio da mostra Um Certo Olhar; enquanto isso, Petra Costa disputou o Oscar com o documentário Democracia em Vertigem. Hoje, com os cortes promovidos desde então em programas de incentivo à produção cultural, a evolução de um quadro tão diverso quanto este se distancia cada vez mais. Nesse cenário, Marighella se posiciona como ponto fora da curva, por chegar às telonas em 2021, mas é um filme contemporâneo a todos os outros que acabou atrasado pelos motivos supracitados. Para Moura, urge, portanto, a necessidade de mudança na gestão do país, para que se viabilize mais uma retomada do cinema nacional; ironicamente a segunda a contar com a participação do ator e agora diretor, que iniciou sua trajetória nas telonas durante o movimento de resgate ao cinema nos anos 1990.

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“Me sinto muito orgulhoso por ter feito parte desse movimento histórico do audiovisual brasileiro; por ter sido parte de uma geração que se envolveu na retomada do cinema nacional”, diz Moura, com brilho nos olhos. “Uma retomada que começou no final dos anos 1990 e que ali, entre 2000 e 2001, quando eu comecei a fazer cinema, estava embalando”. Papéis em O Caminho das Nuvens (2003), Deus é Brasileiro (2003) e Cidade Baixa (2005) embalaram o período, mas foi com Tropa de Elite (2007) que ele viu seu rosto simbolizar um fenômeno ímpar no cinema nacional – por bem e por mal. Pensado como crônica das relações promíscuas de corrupção entre o tráfico de drogas, a polícia militar e a desigualdade social do Rio de Janeiro, o filme de José Padilha acabou sendo recebido como ode à resposta ostensiva das autoridades contra o crime organizado, e não como a problematização que parecia anunciar. Com o carisma inegável de Moura no papel do brutal protagonista Capitão Nascimento, além do roteiro recheado de frases de efeito cunhadas pelo próprio Padilha, por Bráulio Mantovani e por Rodrigo Pimentel, há quem até hoje diga que a produção tenha em si um cunho fascista; algo que o próprio astro da produção rechaça de forma categórica.

“Eu sempre fui enfático em me posicionar contra a ideia de que eu fiz um filme fascista. O Zé Padilha é um cara com quem tive, na época do impeachment de Dilma [Rousseff, ex-presidente do Brasil], discordâncias muito grandes. Mas ele não é fascista. Não é e nem fez um filme fascista”, garante o ator e diretor. “Então, eu sempre fui muito confortável no lugar de defender o que o Tropa era e entender também que é uma obra polissêmica. Você não pode controlar o que as pessoas vão achar que você quis dizer, mas eu posso dizer o que eu quis dizer, e não foi fazer um filme fascista”. Moura admite, entretanto, que a interpretação bélica dada ao filme influenciou diretamente o desenvolvimento de Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010). Na sequência, Capitão Nascimento é retirado do trabalho policial de campo, em trama que mira denunciar as milícias policiais nas favelas cariocas. Mais didático, o roteiro desse segundo filme traz até o personagem afirmando que “a polícia militar do Rio de Janeiro precisa acabar”. Segundo Moura, o arco de Nascimento era o “ganho de consciência”. “Era um personagem que, no primeiro filme, caminhava sem saber bem, tremia a mão, não sabia o que estava acontecendo com ele, e no segundo filme passa a entender a que ele se prestava e a quem ele servia quando entrava na favela e dava tiro em todo mundo”, analisa.

Revisitada hoje, a sequência de Tropa de Elite ganha contornos proféticos dadas as ligações entre figuras de destaque no governo Bolsonaro e milicianos. “A milícia, hoje, está no poder no Palácio do Planalto, nas relações de Bolsonaro e dos seus filhos com a milícia no Rio de Janeiro”, diz Moura. “Tem uma coisa no Bolsonaro que é muito louca, muito interessante: é que Bolsonaro nunca escondeu quem era, nem que defendeu a milícia no Parlamento. Isso sempre foi uma coisa aberta, clara. A homenagem ao torturador Brilhante Ustra, por exemplo; ele nunca disfarçou quem era”. Em meio à forte oposição ao atual governo brasileiro, o ator e diretor se mostra otimista quanto ao futuro político e artístico do país. “Eu acabei de ser convidado para fazer parte da Academia [de Artes e Ciências Cinematográficas, organização norte-americana responsável pela cerimônia do Oscar] com outros brasileiros. A gente vai ocupando esses espaços. Cinematografia potente a gente tem”, diz. “Então, para mim, essa crise tem a ver com a nossa falta de entendimento de que nenhum país no mundo se desenvolverá com potência, com beleza, com autoestima, sem que cultura e diversidade sejam valorizadas”.

Wagner Moura está apaixonado. Frente a todas as dificuldades enfrentadas para a realização de Marighella, o ator e diretor parece ter renovado seu fôlego para seguir fazendo coisas novas em uma carreira na qual parece já ter conquistado tudo que poderia desejar. Do primeiro grande sucesso nos palcos com a premiada peça Abismo de Rosas, de 1997, ao início no cinema nacional em Abril Despedaçado (2001), até papéis memoráveis em diferentes produções da Rede Globo, Moura conseguiu ainda se manter ativo no teatro (chegando até a protagonizar Hamlet, em 2008), desbravar Hollywood e virar estrela de produções no streaming. No tempo em que seu filme levou para conseguir ser lançado, entre 2019 e agora, ele trabalhou em três projetos diferentes: na direção de episódios da temporada final de Narcos: México; atuando ao lado de Ryan Gosling, Chris Evans e Ana de Armas no mais novo filme dos Irmãos Russo, The Grey Man; e com Elisabeth Moss em Shining Girls, série da Apple TV+. Agenda concorrida, mas que, segundo ele, tem garantia de espaço contanto que os projetos vindouros possam abarcar um sentimento: o amor.

“Para mim, tudo é sobre amor. Marighella é um filme sobre amor. Por exemplo, quando as pessoas viam que Pablo Escobar [personagem vivido por Moura na primeira temporada de Narcos, em retrato telebiográfico] amava aquela família dele, quando o espectador identifica amor de verdade nas coisas, ele tende a se identificar com aquilo”, refletiu. A valorização por esse sentimento não é de hoje; guia escolhas e decisões dele desde muitos anos atrás, explicando boa parte do sucesso de sua última atuação em novelas, no ano de 2007. Foi na trama de Paraíso Tropical, quando Moura conquistou o Brasil como o vilão Olavo, que ele comprovou sua tese em escala nacional: inseriu amor à equação formada por seu personagem e Bebel, prostituta interpretada por Camila Pitanga, gerando memes que até hoje ressurgem nas redes sociais (como o inesquecível “casamento primaveril em pleno outono”). “Os personagens não foram escritos para se apaixonarem. Era para ser uma relação de um usar o outro”, explicou. “Aí, lembro de combinar com Camila de fazer, nas cenas, com que eles se apaixonassem. Então, o Dennis Carvalho [diretor da novela], que era parceiro, começou a achar que era bom”.

O amor (neste caso, pelo cinema) é também a razão pela qual Moura nunca foi daqueles atores que bombaram na TV para depois investir nas telonas, fazendo na realidade o caminho contrário – e nunca figurando nas listas de contratados de nenhuma emissora. Na Globo, onde concentrou praticamente toda sua atuação nacional na telinha, fez só mais uma novela além de Paraíso, A Lua Me Disse (2005), e a minissérie biográfica de Juscelino Kubitschek, JK (2006). “Fico super orgulhoso disso; de ter chegado à TV, que era onde os atores dos anos 1980 queriam chegar porque não havia cinema, graças ao meu trabalho em filmes”, celebrou.

Era uma coisa muito rara, na época. A primeira novela que eu fiz, eu era um galã. Os nordestinos na televisão eram sempre um estereótipo, então essa curva foi muito interessante: deles quererem trabalhar comigo, com Lazinho [Lázaro Ramos, colega de profissão e amigo pessoal de Moura] por causa do cinema.
Wagner Moura, ao Omelete
TV Globo/João Miguel Júnior

Moura também usa o amor, ou talvez mais ainda a paixão, para regular certos aspectos da carreira. Um dos primeiros brasileiros a brilharem em produções originais de streaming, protagonizando a primeira temporada de Narcos, da Netflix, em 2015, ele abriu portas para que hoje vejamos astros como Bruno Gagliasso, Ingrid Guimarães e o próprio “Lazinho” deixarem a TV aberta para assinar contratos de exclusividade com grandes plataformas. O formato, entretanto, não o agrada; inviabiliza a recusa para projetos que não despertem nele os sentimentos que o guiam. “Eu não gosto muito desse negócio de ter de fazer uma coisa porque alguém está me pagando. Algo como ‘não quero fazer essa novela, mas ela paga um salário bom’. Eu não consigo fazer”, diz. “Para mim, o que estava na minha frente sempre era a minha vontade de querer fazer o que me interessasse artisticamente. Então, tudo que eu fiz na Globo, eu fiz porque quis, não por ser contratado”.

Romântico, Moura já prepara o coração para um novo amor, mesmo em meio a toda a empolgação, alívio, ação e paixão proporcionados pelo lançamento de Marighella: atuar para as câmeras de Kleber Mendonça Filho em um novo filme, prometido para 2023. Para além disso, a palavra de ordem é uma só – parceria. “Eu estou procurando gente com quem eu me identifique artisticamente e também como pessoa para fazer essas alianças”, explica. “Você vai encontrando gente no caminho e diz: ‘Como eu gosto de trabalhar com essa pessoa. Quero continuar fazendo isso’. Para mim, vejo mais isso no futuro: estar com quem quero estar perto”. Na lista de pretendentes artísticos para o futuro próximo estão o diretor de fotografia Adrian Teijido, a colega atriz Elisabeth Moss e um nome inédito que ele planeja especificamente dirigir: ele mesmo. Como o próprio Moura tem uma breve fala durante os 155 minutos de seu filme, urge perguntar se aquilo se tratou de uma preparação para atuar sob sua própria orientação. “Não, não”, responde ele, sorrindo. “Essa fala eu coloquei porque achei que fiz bem. Eu li para depois outro ator dublar, mas aí mudei de ideia. Achei que ficou bom”.

Publicado 05 de Novembro de 2021
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Coordenação Jorge Corrêa | @_jorgecorrea
Fotografia Victor Vivacqua