COMO SE FOSSE
A PRIMEIRA VEZ

A San Diego Comic-Con finalmente voltou à sua forma presencial em 2022. Mas, mais do que um simples retorno, o evento lidou com tantos ineditismos que talvez não seja tão absurdo considerá-lo também uma reestreia; veja como foi

Mariana Canhisares | @maricanhisares Repórter

Por quase três anos a ensolarada San Diego perdeu parte do seu charme durante o verão. As ruas ao redor do grandioso Centro de Convenções, tanto no tradicional burburinho dos bares e restaurantes do Gaslamp Quarter, quanto às margens da Marina com suas embarcações luxuosas, ficaram surpreendentemente silenciosas. Não chegaram a se acinzentar, mas com certeza sentiram a ausência das cores do desfile de cosplayers que por cinco dias do ano tomavam a cidade para si e a transformavam no lar temporário de nerds e fãs de cultura pop do mundo todo. É claro que o motivo para esse hiato foi um só: a pandemia do coronavírus, que tornou aglomerações como a Comic-Con um risco à vida. Logo, é indiscutível que a decisão de cancelar a SDCC no ano seguinte ao seu aniversário de 50 anos foi uma necessidade. Mas também não dá para negar que o evento na sua forma convencional deixou saudades, quer você tenha o hábito de acompanhá-lo in loco ou vivê-lo indiretamente pelas redes sociais.

Em pleno 2022, embora o COVID-19 esteja longe de ser uma realidade superada, San Diego voltou a ter o trânsito intenso de pessoas pelas calçadas, todas devidamente trajadas com referências aos seus personagens preferidos; prédios e trens envelopados com banners das principais atrações da TV e do cinema; e filas e mais filas de cadeiras dobráveis, barracas e colchões infláveis, ocupados por fãs na expectativa de, quem sabe, poder acompanhar com os próprios olhos todas as novidades anunciadas no famoso Hall H.

Enfim, o bom filho a casa torna, certo? Quase isso. A empolgação do público era evidente, mas os sorrisos agora estavam escondidos por máscaras, uma exigência em todos os cantos do evento. As ruas estavam movimentadas, mas não era estranho ouvir as pessoas comentando como não estava tão cheio como antes — na verdade, houve até quem tenha celebrado como estava tranquilo circular de um lado para o outro do Centro de Convenções. E mesmo os painéis, sempre planejados na minúcia, enfrentaram alguns problemas técnicos.

Em muitos sentidos, a San Diego Comic-Con do retorno teve também jeito de reestreia. Reboot, se preferir. Curiosamente, a SDCC de novas “primeiras” vezes foi a minha primeira vez em San Diego, e no ineditismo de tudo isso não faltam histórias para contar, de luxos e perrengues, que resumem muito bem não só a efervescência de uma “inauguração”, mas por que ainda aguardamos ansiosamente por esses dias no final de julho.

UNIVERSO EXPANDIDO

A sensação nas proximidades do Centro de Convenções não era de esvaziamento. Ao menos, não para alguém que, como eu, não tinha outra referência além do que estava diante dos próprios olhos, isto é, as aglomerações no lobby do hotel, nas faixas de pedestre, na entrada das ativações e, claro, nas portas do espaço que há anos sedia a Comic-Con mais tradicional do mundo. Na verdade, se não tivessem me falado, diria que o evento estava lotado. Na ativação da série House of the Dragon, na qual o visitante tinha um gostinho da Westeros dos tempos áureos dos Targaryen e seus dragões, por exemplo, houve dia em que a espera para a experiência ultrapassava as seis horas. Mesmo para entrar no estande da Funko, onde a marca vendia bonecos exclusivos de produções como Ted Lasso, era praticamente impossível — e que não fique dúvidas: escrevo esse relato ainda decepcionada por não conseguir meu sonhado colecionável do treinador do Richmond F.C. Contudo, desde o primeiro dia, meus companheiros de viagem Marcelo Forlani e Thiago Romariz estranhavam a quantidade de pessoas participando do evento. “Deve ter gente ainda insegura por causa da COVID, né?”, apostavam. “No sábado deve encher mais”. E até encheu, mas não para os parâmetros dos dois veteranos de SDCC.

A exigência do uso de máscaras e da comprovação de vacinação (ou de teste negativo de COVID) deve, sim, ter afastado uma parcela do público. Mas descobrimos, por acaso, uma outra provável razão para a diminuição do movimento. Uma moça sentada atrás do Forlani no Hall H contou que comprara seu ingresso e do marido em 2020 — no caso, para a edição que foi eventualmente cancelada por causa da pandemia —, mas que apenas ela pode comparecer neste retorno do evento ao presencial. Sem a possibilidade de transferir a credencial do marido para outra pessoa, ela não teve outra escolha a não ser ir sozinha. Não sei dizer se ela morreu com aquela entrada — talvez o compromisso de trabalho dele tenha surgido de última hora e ele tenha perdido o prazo para pedir reembolso? —, mas a questão toda foi: quem tinha ingresso desde 2020, precisava da sorte de ter a agenda livre ou estar atento para não perder os prazos de devolução da organização; quem não tinha garantido a sua credencial anos atrás, ou se sujeitava a uma guerra de lances no eBay, em alguns casos com valores superiores a US$ 1.000, ou ficava mesmo de fora.

Ainda assim, como eu disse, a impressão que ficou não foi de um evento pequeno. Pelo contrário. Ver como as ruas do centro da cidade formam uma espécie de pavilhão expandido frisou como San Diego realmente não deixou de abraçar a Comic-Con. Para além das artes promocionais das séries e das ativações, todas externas ao Centro de Convenções, os bares ofereciam menus especiais para os visitantes, com drinks batizados em homenagem a heróis da DC e da Marvel; os cosplayers davam uma pausa no seu dia de compras e iam, com todos seus aparatos, comer um hot-dog rapidinho às margens da Baía; até os atendentes do meu hotel vestiram camisetas temáticas e ofereceram a troca da minha chave para um cartão mais geek. Mesmo depois da pausa, a SDCC ainda é parte da cidade, e isso garante uma experiência realmente única da celebração da cultura pop.

As particularidades da San Diego Comic-Con, porém, não se limitam a isso. Acostumada com a CCXP, qual não foi a minha surpresa ao perceber que o Artists’ Alley e as lojas se misturam no pavilhão? Pois é, os artistas estão espalhados por toda a extensão do Centro de Convenções e, no tumulto das promoções e filas, às vezes é fácil passar reto por eles — exceto pelo espaço dedicado às obras do Alex Ross. Este, sim, é prontamente encontrado dado seu tamanho, muito embora o autor mesmo seja ausência confirmada do evento há anos. Também não dá para dizer que esperava descobrir a existência de uma figura conhecida nos corredores como kitty man (“homem dos gatinhos”, em tradução livre), um cara misterioso que deixa pelúcia de gatos do seu lado e some antes de ser notado — a título de transparência é bom dizer que, infelizmente, esse causo não é meu, mas do nosso colaborador Diego Peres, de quem não tive coragem de roubar o presente fofo por mais que eu quisesse muito.

Mas talvez meu maior choque nessa primeira vez na Califórnia para a convenção tenha sido com a vida noturna pós-evento. Na taverna de Dungeons & Dragons, uma ativação especial para o filme estrelado por Chris Pine, eu e o Forlani fomos expulsos assim que o relógio marcou 21h — e expulsos não é figura de linguagem, não. Literalmente um homem veio nos escoltar para fora e, por sorte, naquele momento já tínhamos garantido nossas canecas, pôsteres e, diga-se de passagem, uma foto simulando a luta de espadas mais desengonçada que você pode imaginar. Os bares, por sua vez, pontualmente viravam as cadeiras sobre as mesas às 23h, e não tinha saideira nenhuma que pudesse adiar o fim da noite. Nem na sexta, nem no sábado. Chega a ser engraçado: você até encontrava uma fatia de pizza ou um milkshake na madrugada — aliás, obrigada pelas dicas, Azaghal e Jovem Nerd! —, mas achar uma cerveja depois da meia-noite exigia esforço.

LIÇÕES DE PRIMEIRA VIAGEM

Novata assumida que sou, não posso negar que aprendi muita coisa também na tentativa e erro, e o expediente dos estabelecimentos foi o menor dos exemplos. Para que meus deslizes não tenham sido em vão, entrego a vocês de bandeja as principais lições que descobri na prática:

1) Pergunte mais de uma vez e em lugares diferentes. Informações corretas são uma commodity rara na San Diego Comic-Con. Isso porque as orientações mudam — e não é pouco — conforme a porta e a pessoa a quem você pergunta. Para pegar a minha credencial, por exemplo, ouvi quatro procedimentos diferentes, o que acabou me levando a imprimi-la na fila dos funcionários — leia-se voluntários — do evento. Nessa hora, melhor do que se revoltar é ser esperto: insista na sua dúvida até achar a resposta que mais te agrade!

2) Gravar a experiência enquanto você a vive pode ser uma armadilha. Veja, eu não tive muita alternativa: como estava lá produzindo conteúdo, eu precisava filmar as ativações conforme as descobria com meus próprios olhos. Mas, se você puder, talvez só as aproveite? Digo isso porque, na ativação de House of the Dragon, enquanto teoricamente estávamos vendo o rachar dos ovos de dragão, eu quase quebrei um deles de verdade [risos]. Em minha defesa, estava escuro e eu tinha certeza de que estava apoiando o ovo em um lugar plano, e não tacando ele num buraco. Mas, talvez, se eu não estivesse distraída, eu teria salvado aquele pobre mascote Targaryen.

3) Ir à SDCC é fazer escolhas. Não bastassem todas as atrações “premium” do evento, há painéis interessantes também fora do Hall H e do Ballroom 20, assim como ativações mais adiante do Gaslamp Quarter e estandes menores, mas mesmo assim surpreendentes no pavilhão. É muita coisa para ver em pouco tempo e, infelizmente, você não vai conseguir conhecer tudo — e acreditem: eu tentei. Em outras palavras, você certamente vai voltar para casa lamentando não ter visto isso ou aquilo. No meu caso, foram o painel e a experiência de Ruptura, do Apple TV+. Acontece! Pense bem sobre quais são suas prioridades e tente se divertir, inclusive, na espera entre uma coisa e outra.

H DE HISTÓRICO, MAS NÃO HISTÉRICO

O Hall H, o maior auditório da San Diego Comic-Con, é praticamente uma instituição a essa altura do campeonato. Ano após ano, o espaço é palco das revelações mais bombásticas da cultura pop, seja com a divulgação de prévias exclusivas, seja com os já tradicionais anúncios do calendário de estreia da Marvel e da DC. Em 2022, como você bem deve saber, não foi diferente: com Dungeons & Dragons, a série de O Senhor dos Anéis, Sandman, House of the Dragon, Adão Negro e as fases 5 e 6 do MCU, não faltaram novidades para acelerar o coração dos fãs.

Não há dúvida de que o H que dá nome ao auditório poderia vir de histórico ou hipnotizante. Depois de viver três dos cinco dias de evento ali dentro, os dois adjetivos parecem muito pertinentes para descrever a experiência coletiva dos felizardos que, todos os dias, lutaram e conseguiram um dos mais de seis mil lugares do auditório. Juro que não é exagero: só de estar diante daquele backdrop clássico com o logo do evento e aquela longa mesa, pronta para receber criadores, produtores e, claro, os atores já foi especial para mim — mesmo que, convenhamos, o espaço em si seja mais honesto do que qualquer coisa próxima do extraordinário.

Estamos falando de uma espécie de galpão preto, com cadeiras enfileiradas diante do palco ou, então, em frente aos telões posicionados para atender até o último membro da turma do fundão, ou seja, realmente nada demais. Mas a verdade é que não precisa de muito mais do que isso. Só a entrada da Michelle Rodriguez, dando cambalhota e apontando uma arma imaginária para a plateia já é exemplo o suficiente para ilustrar que tudo pode acontecer ali. Tudo mesmo, desde uma orquestra tomando o palco, um The Rock elétrico e imponente prometendo mudar a hierarquia de poder ou, mais impressionante ainda, um George R. R. Martin saindo da toca para falar de Game of Thrones.

No entanto, o H que dá nome ao auditório certamente nada tem a ver com histeria. O público da San Diego Comic-Con é animado, mas nada comparado à energia que nós brasileiros temos nos eventos de fãs. Ouve-se mais entusiasmo com o tradicional aquecimento pré-painel do Eddie Ibrahim, o diretor de programação da SDCC, do que ao longo de toda a apresentação: tão logo a atração começa, as palmas empolgadas viram uhuls tímidos. Veja, o Thunder, nosso auditório na CCXP, tem metade da capacidade do Hall H, e ainda assim tenho certeza de que se o trailer de Anéis do Poder tivesse saído em solo brasileiro, eu seria incapaz de ouvir qualquer coisa do painel após a aparição do Balrog. É, o Hall H é hospitaleiro, mas também pode ser um tanto hermético.

DIAS DE LUTA, DIAS DE GLÓRIA

Descobri na pele, porém, que entrar no Hall H às vezes pressupõe um bom tanto de humilhação, sobretudo se você quer assistir aos painéis de sábado. Afinal, como este é o dia que concentra os principais estúdios, começando com a Warner Bros. e terminando com o Marvel Studios, as pessoas não têm embaraço de, ano após ano, passar a noite anterior às margens da Baía de San Diego, no chão, no frio e no escuro quase que absoluto. Dadas as condições, digamos, precárias, você consegue distinguir rapidamente quem é veterano de evento e quem está prestes a aprender algumas lições. E adivinhe em qual categoria eu me encaixei?

Pois é. Infelizmente, não teve convite de imprensa que tenha me poupado dessa experiência. Na tarde de sexta-feira (22), depois de entrevistar o elenco de Anéis de Poder — aliás, fiquem de olho no Omelete —, cruzei a extensão do pavilhão e fui encontrar o Romariz em uma espécie de ilha para o que eu achei que seria apenas uma gravação de OmeleTV. O dia estava quente, então levava comigo meu bom e velho óculos de sol, mas nenhum casaco. Crente que voltaria para o hotel para começar a trabalhar nas matérias de O Senhor dos Anéis, tinha na bolsa apenas um resto de batatinha, meu almoço nos últimos dois dias. Diante de tanto despreparo, não preciso nem dizer que não tinha cadeira dobrável, colchão inflável ou sequer um travesseiro de pescoço na mochila, todos itens bastante úteis quando você vai passar horas em uma fila, né?

Não tenho orgulho de dizer isso, mas a verdade é que demorou para que eu entendesse o que estava acontecendo ali, isto é, que eu ficaria das 16h, quando começamos a gravar, até às 1h30 da manhã para tentar uma vaga para acompanhar as novidades de Shazam! 2 e Adão Negro. Foi realmente só quando o Forlani me contou que conseguiu um convite para o painel da Warner que minha estupidez bateu, e lá, largada na grama, fiquei.

Com o anoitecer, veio o frio e a fome, é claro, mas também a ansiedade coletiva. As pessoas checavam a todo instante o perfil no Twitter que dá atualizações da distribuição das pulseirinhas, o item que garante sua entrada no Hall H, e se questionavam sobre a veracidade das informações. Isso porque, como todo brasileiro sabe, há gente esperta em todo lugar: juro, foram muitos os tweets que vimos mentindo sobre o esgotamento das pulseiras só para fazer com que as pessoas desistissem e, quem sabe assim, aumentar as chances de ter uma cadeira para chamar de sua. Quando efetivamente a distribuição começou, então, nem se fale. Aí era fake news para todo o lado.

Mas, honestamente, esse tipo de coisa nem me incomodou. Parecia parte das regras daquele jogo que, sem querer, eu já tinha topado participar. O que não entra na minha cabeça até agora é por que os seis voluntários que conferiram a fila para o auditório do início ao fim ali pelas 21h, lembrando as pessoas de estarem com as credenciais em mãos, não contaram quantas pessoas estavam ali. Eles desfilaram com seus coletes vermelhos piscantes para só avisar que sua espera fora em vão quatro horas depois. Se você vai entender esse “procedimento” como desorganização ou parte do pacote, fica a seu critério. Mas uma coisa que não tem brecha para discussão é que não conseguir a pulseira por 20 pessoas é outro tipo de frustração.

Como diria o Chorão, “dias de luta, dias de glória”. Não deu para conferir o painel da Warner, mas posso me gabar de vários pequenos luxos: trombei com o Danny Pudi, o Abed de Community, no corredor do hotel, e com o elenco da série de A Lenda do Tesouro Perdido no bar; fui convidada para um jantar chiquérrimo do Prime Video para celebrar Os Anéis do Poder, onde não apenas conferi em primeira mão o trailer que seria revelado no dia seguinte, como conversei em português com J. D. Payne, um dos criadores da série. Até zoada pelo ator Owain Arthur, o Príncipe Durin IV, na nossa entrevista eu fui, sabe assim?

É, a San Diego Comic-Con da volta, a minha primeira, foi memorável em muitos sentidos. Entre deslizes e triunfos de ambas as partes — afinal, quer você seja novato ou veterano, não tem como escapar disso —, sobra a vontade de voltar. Quem sabe nos vemos na Califórnia em 2023?

Publicado 06 de Agosto de 2022
Repórter Mariana Canhisares | @maricanhisares
Editora Beatriz Amendola | @bia_amendola
Direção de Arte | Projeto Gráfico Luiz Carlos Torreão de Castro | @luizcarlostc
Designer Kaique Vieira | @kaicovieira