PRONTOS PARA
A PRÓXIMA FASE

Como os filmes de games finalmente
deram um upgrade, após anos de fracassos

Eduardo Pereira | @eduperazeda Reportagem

Em 2023 fará 30 anos desde que o britânico Bob Hoskins e o americano John Leguizamo tomaram telas de cinema do mundo todo trajados no que pareciam ser cosplays questionáveis dos irmãos italianos Mario e Luigi. Na pele dos principais personagens da desenvolvedora e distribuidora de games japonesa Nintendo, a dupla de atores protagonizou o que é considerado o primeiro filme de todos os tempos a ser inspirado em uma franquia de jogos eletrônicos — Super Mario Bros. (1993) — e inaugurou quase três décadas de projetos sofríveis que seguiram pelo mesmo caminho.

Soa exagerado, mas é fato: dos 48 principais filmes de games que foram lançados desde então, só 8 conseguiram uma aprovação da crítica especializada acima de 50%, enquanto apenas 5 ficaram acima dos 60% (segundo o agregador de análises Rotten Tomatoes). Em termos financeiros, o principal indicador de sucesso de Hollywood, as adaptações de jogos eletrônicos também mostram sua irregularidade: independente do nível de apelo junto à crítica ou ao público, nenhuma dessas produções jamais ultrapassou a marca de meio bilhão de dólares em arrecadação. A título de comparação, desde Homem de Ferro (2008), o Universo Cinematográfico da Marvel (MCU) já viu mais de 10 filmes fazerem mais de US$1 bilhão.

É um aproveitamento pífio para três décadas de produções variadas, mas há motivo para otimismo: as cinco mais bem avaliadas adaptações cinematográficas de games foram lançadas nos últimos quatro anos. Além disso, a oferta de filmes e séries do tipo só aumenta — incluindo aí títulos de amplo apelo popular como Borderlands, The Last of Us, God of War, Resident Evil e até a própria franquia Mario Bros. (agora, em animação 3D). Para analisar essa evolução tardia, mas que experimenta uma franca ascensão, o Omelete destrinchou sua linha do tempo e ouviu formadores de opinião que partilham da mesma admiração e compreensão tanto de jogos eletrônicos quanto da sétima arte.

OS MAIS TERRÍVEIS VILÕES

Os dez piores filmes de games, segundo a crítica

FASE 1 (1993 - 1999)

“Eu acho que eles tentaram com muito afinco e, no final, foi um projeto muito divertido, no qual eles colocaram muito esforço. A única coisa da qual me arrependo é que o filme pode ter tentado chegar muito perto do que eram os videogames de Mario Bros., virando um filme que era sobre um videogame, ao invés de ser divertido por si só”. Essa fala de Shigeru Miyamoto, criador de Mario e Luigi e diretor da Nintendo, sobre Super Mario Bros. (1993), deve ser uma das críticas mais leves já direcionadas à produção. O filme do casal Rocky Morton e Annabel Jankel é um célebre fracasso hollywoodiano, amargando 28% de aprovação da crítica nos Rotten Tomatoes (incluindo aí dois polegares negativos da dupla Gene Siskel e Roger Ebert, transmitidos nacionalmente pela TV americana), colecionando polêmicas (os astros Bob Hoskins e Dennis Hopper criticaram a produção de forma recorrente) e servindo como pedra fundamental de uma década infame, mas ainda assim essencial, para as adaptações cinematográficas de games.

Mario foi fruto de um movimento comercial bastante lógico, adotado pela indústria hollywoodiana a partir dos anos 1990. A fim de atacar um nicho de mercado emergente, produtores enxergaram na ascensão dos jogos eletrônicos uma chance de crescer profissionalmente ao assinar o que poderia vir a ser o próximo inesperado sucesso das telonas. Para isso, passaram a negociar com desenvolvedoras o licenciamento de suas principais propriedades. Elas, por sua vez, viram no cinema uma chance de atingir ainda mais público, e foi a execução desse plano que fez o britânico Roland Joffé tirar o filme de 1993 do papel junto à Nintendo — mas a essência do apaixonante jogo de plataforma dos encanadores coloridos se perdeu em influências sombrias demais, que iam de Batman (1989) até Mad Max (1979). Com um orçamento inchado (para a época e as ambições da produção) de quase US$48 milhões, além de um roteiro inteiramente equivocado (que mesclava ficção científica a sátira ao corporativismo e às crises da meia-idade), Mario fez nascer uma fórmula torta que ditou os demais filmes de games até a virada do século.

“Videogame era considerado um nicho muito específico, direcionado a um público também muito específico, que na maioria das vezes era considerado infantil e limitado”, lembra Pablo Miyazawa, jornalista especializado em cultura pop. “Então, os filmes produzidos baseados nessas grandes marcas dos videogames também eram limitados. Não se investia muito em roteiro, em profundidade; a intenção não era fazer grandes obras”. O melhor exemplo disso chegou às telonas só um ano depois de Mario, na forma de Street Fighter (1994). A adaptação do clássico game de luta da Capcom foi co-produzida e financiada pela desenvolvedora, que tinha de aprovar todo e qualquer aspecto da produção de forma antecipada. Mas o esmero necessário para nutrir uma sinergia tão delicada passou longe da produção, que deu partida com seu orçamento de US$35 milhões comprometido quase que pela metade com os rendimentos dos astros Jean-Claude Van Damme (Soldado Universal) e Raul Julia (O Beijo da Mulher-Aranha), nos papéis principais. Na direção, o até então roteirista Steven E. De Souza teve de fazer sua estreia equilibrando problemas de bastidores — que vão das idas e vindas de atores de primeira viagem e tensões ligadas ao abuso de drogas à doença e morte de uma de suas principais estrelas — por sobre uma trama que mais parecia uma paródia preguiçosa dos filmes de James Bond. E, ainda assim, deu certo! Ao menos, comercialmente…

Street Fighter conseguiu quase que triplicar seu investimento, fazendo US$99,4 milhões nas bilheterias americanas e abrindo um precedente a ser repetido por outras adaptações. Se Double Dragon (1994) não conseguiu repetir o feito, com sua versão cartunesca e boba do game de porradaria em plataforma da Technōs Japan Corporation, logo chegou a vez da saudosa Midway Games tentar a sorte com Mortal Kombat (1995). Dirigido pelo ainda novato e futuramente mítico Paul W. S. Anderson (à época, recém-saído de seu filme de estreia), o longa-metragem de ação tornou-se emblemático por dois motivos: os US$122.2 milhões de bilheteria conquistados (a despeito de seus negativos 45% de aprovação junto à crítica) com um orçamento de R$20 milhões e a solidificação de uma dicotomia que para sempre estaria presente na conversa sobre adaptações cinematográficas de videogames: a dos filmes objetivamente ruins, mas que ainda assim conquistam o coração do público. “Me lembro de ter gostado bastante do filme do Street Fighter e me lembro de não ter achado o Super Mario tão ruim”, diz Miyazawa “A gente costuma nutrir uma expectativa grande por conta da memória afetiva; você acha que aquele game é tão bom porque viajou na imaginação dele, e aí espera que o filme tenha esse mesmo efeito. Acho que eu nunca tive decepções por não nutrir altas expectativas”.

Como explica Isabela Boscov, crítica de cinema no Youtube, não existe uma régua fixa para a distinção entre filmes bons e ruins, mas há um critério que pode explicar o que determina se uma produção vai ou não cativar o público. “Um filme conseguir transparecer ter sido feito por humanos tem se tornado algo importante”, ela observa. “Mesmo em filmes que são feitos como produto, que são a exploração de uma marca, você pode ter grande criatividade, grande talento. Você pode avançar propostas narrativas”. De fato, em suas recorrentes reprises no SBT, Mortal Kombat segue cativando novas gerações de espectadores por acertar, ainda que em meio a erros fundamentais para a gramática do cinema, a essência de divertimento que move qualquer franquia de jogos. Ao mesmo tempo, a sofrível sequência Mortal Kombat: Annihilation (1997) ofereceu o melhor exemplo do tipo de produção desprovida de alma que pode vir da compreensão de adaptações como puro caça-níquel. Por fim, ainda que o esquecível Wing Commander (1999) tenha marcado a virada do século de forma negativa, os anos 1990 passaram longe de prenunciar o quão baixo poderia descer o nível dos filmes de games.

FASE 2 (2001 - 2012)

Do lançamento de Super Mario Bros. até o de Wing Commander, nos anos 1990, a indústria de games atravessou apenas uma grande transição geracional em seus consoles: da quinta (1993-2006) para a sexta (1998-2013). Como fonte de inspiração para a sétima arte, até então, predominavam jogos de argumentos narrativos mais sucintos (quando não totalmente ausentes), que permitiam aos criativos de Hollywood uma quase total liberdade de estrutura adaptativa. PlayStation, Nintendo 64, Sega Saturn, Atari Jaguar e um bom número de outros videogames, lançados entre 1994 e 1996, pulverizavam uma oferta de produtos mais rudimentar do que seria o caso a partir da consolidação do quarteto formado por DreamCast, PlayStation 2, GameCube e Xbox, entre 1998 e 2001. Esse afunilamento de consoles não só fortaleceria uma batalha comercial que aumentaria — e muito — a oferta de games dos mais variados, como ainda impulsionaria avanços tecnológicos cada vez mais velozes. Não à toa, entre 2001 e 2012, o mundo assistiria à consolidação da sexta geração como uma das mais longevas de todos os tempos (15 anos), além do surgimento de mais duas: sétima (2005-2017) e oitava (2012-hoje). Também não à toa, as adaptações lançadas nas telonas, nesse período, seriam as mais irregulares tanto em qualidade quanto em nível de satisfação do público.

“Na medida em que os games vão ganhando mais profundidade, muito por conta das facilidades tecnológicas, vai se tornando mais possível fazer games mais cinematográficos. Por consequência, os filmes baseados em games passam a despertar mais expectativa”, analisa Miyazawa. De fato, Lara Croft: Tomb Raider (2001) exibiu um novo nível de comprometimento à iconografia (incluindo, aí, a hiperssexualização da personagem-título, vivida por Angelina Jolie) e ao cânone narrativo da franquia de games então desenvolvida pela Core Design, apesar de seguir os moldes do cinema-pipoca de fácil digestão estabelecidos por Street Fighter e Mortal Kombat. Entretanto, o melhor exemplo de uma grande evolução nas adaptações da época é Final Fantasy (2001); um colossal fracasso comercial que custou US$137 milhões e rendeu só US$85 milhões, mas que reconfigurou de forma marcante, nas telonas, a franquia de RPG da Square Enix em uma ópera espacial lisérgica e pró-ecologia. Dirigida pelo criador dos games, Hironobu Sakaguchi, a produção foi o primeiro longa-metragem de animação em CGI a buscar o fotorrealismo, e por mais que não tenha agradado de forma massiva a crítica especializada (apenas 44% de aprovação no Rotten Tomatoes), foi a primeira — e, talvez, a única — adaptação de games a ser avaliada por alguns como revolucionária. “Final Fantasy é um marco técnico, como os primeiros filmes falados, ou em 3D”, escreveu o crítico americano Roger Ebert, há 21 anos.

Mas, como disse o poeta: um sofre, e o outro ri, e Final Fantasy teve sua relevância artística histórica sufocada por um fracasso comercial retumbante, enquanto Tomb Raider fez sonoros US$274.7 milhões, a partir de um orçamento de US$115 milhões. O recado estava dado, e os anos seguintes foram de uma exploração constante de propriedades criativas dos games que pudessem se enquadrar da forma menos custosa possível em estruturas clássicas (para não dizer arcaicas e obsoletas) do cinema de gênero. Da sequência Lara Croft: Tomb Raider - A Origem da Vida (2003) às tranqueiras House of the Dead: O Filme (2003), Alone in the Dark (2005) BloodRayne (2006), Salve-Se Quem Puder (2007), Em Nome do Rei (2008) e Far Cry: Fuga do Inferno (2008) — todas essas do diretor alemão Uwe Boll, uma espécie de Martin Scorsese antimatéria —, a primeira década dos anos 2000 foi repleta de ótimos exemplos para o pior tipo de “filme de produto” que destaca por Boscov: aquele onde “a parte do produto se sobrepõe de maneira muito negativa, de forma tão preponderante, que trabalha à exclusão de outros aspectos criativos”.

Foram anos complicados para que os fãs de games e filmes seguissem crentes na possibilidade de um dia ver ambas as mídias conjugadas de forma satisfatória, mas aquela dicotomia apresentada lá atrás pelo velho Mortal Kombat volta e meia dava as caras — e aliviava um pouco da dor. “Eu lembro do primeiro filme de Silent Hill [Terror em Silent Hill, de 2006], que eu pirei muito quando vi. Achei muito da hora, porque eu jogava o jogo para o PlayStation. Eles conseguiram trazer muito da vibe do jogo, daquele universo”, comenta Load Comics, criador de conteúdo especializado em cultura pop. “Eu lembro que eu vi esse filme um pouco nova, mais nova do que eu deveria, e ele me marcou bastante. Na época, eu não tinha jogado nenhum Silent Hill e eu acabei me interessando pela história do jogo por causa do Terror em Silent Hill, ecoa Bruna Penilhas, editora de Games no Canaltech. A adaptação da franquia de jogos de horror da Konami, dirigida por Christophe Gans, também foi lembrada com carinho por Miyazawa, e os três concordam tanto sobre a diversão proporcionada por Resident Evil: O Hóspede Maldito (2002), quanto sobre os rumos errantes que a franquia dirigida por Paul W. S. Anderson (olha ele aí, de novo) tomou nos cinco filmes seguintes: “Desandou”, brincou o jornalista. Mas há quem discorde.

A WILD MARCELO HESSEL APPEARS!

Em caráter extraordinário, a reportagem buscou a opinião do crítico de cinema do Omelete (e, talvez, maior fã do mundo de Paul W. S. Anderson), sobre os filmes de Resident Evil realizados pelo cineasta britânico: além de Hóspede Maldito, Resident Evil 2: Apocalipse (2004), Resident Evil 3: A Extinção (2007), Resident Evil 4: Recomeço (2010), Resident Evil 5: Retribuição (2012) e Resident Evil 6: O Capítulo Final (2016) “Ele faz uma coisa puramente cinematográfica. Ele não está interessado em dialogar com essas coisas pequenas com as quais os fãs se importam”, afirmou Hessel. Para ele, são elas o que é “familiar” e o que é “autoimportante”, conceitos sempre ancorados na reverência ao game original. Além de ter destacado como Anderson sempre “está procurando realmente uma experiência que é puramente cinematográfica, independente da origem do material”, o crítico ainda ressaltou como isso se dá motivado por um interesse na franquia “como um universo de potenciais de horror e de claustrofobia. Ele não está preocupado em fazer uma coisa que seja engessada em si mesmo, tanto que os filmes são muito diferentes entre si”.

Zumbis, câmera lenta e Milla Jovovich (Monster Hunter) à parte, o início dos anos 2000 também viu a consolidação de uma fórmula que Miyazawa destaca como uma das mais rasteiras na adaptação de jogos para as telonas. “Aqueles que pegam apenas a premissa do jogo como desculpa para fazer um filme de ação com uma estrela e conquistar uma massa de público que não está realmente muito interessado em grandes espetáculos cinematográficos, mas apenas em buscar um pouco de entretenimento durante duas horas”. Entre os principais exemplos estão o então astro da WWE Dwayne “The Rock” Johnson, no famigerado Doom: A Porta do Inferno (2005, aquele mesmo com a famosa cena em 1ª pessoa); Mark Wahlberg, no totalmente equivocado Max Payne (2008); e Jake Gyllenhaal na adaptação da Disney de Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo (2010). “Esse é um filme que eu achei interessante, visualmente falando, mas a história é super rasa, então não correspondeu ao que poderia ser. Mas se você pensa na história do game como profunda, ela não é”, acrescenta o jornalista.

FASE 3 (2014 - Atualmente)

Com os anos 2010, veio a consolidação do mercado de games como um dos maiores colossos comerciais da história da humanidade. Em um cenário pré-pandemia da covid-19, ainda no ano de 2019, a indústria de jogos lucrou cerca de US$148,8 bilhões em todo o mundo, enquanto a bilheteria global fechou o ano com aproximadamente US$42,5 bilhões. Isso significa que o jogo virou, e agora é Hollywood quem tem de correr atrás da boa vontade de desenvolvedoras que não mais precisam dessa luxuosa vitrine para seus jogos? “Sabemos que o mercado de games no mundo inteiro gera mais renda que o de entretenimento como um todo, com cinema e televisão, mas eu acho que há uma boa troca para os dois lados”, diz Penilhas. “Quando uma franquia de games é adaptada para o cinema, você tem ali um potencial muito alto de conseguir chamar um público inédito”. O fator econômico também contribui para uma relação mais simbiótica entre as duas mídias, ela acrescenta. “Ainda que um ingresso de cinema seja caro no Brasil, é muito mais em conta do que você pagar R$250, R$300 em um jogo. O mercado de games é muito mais elitista e caro”. Tudo isso colabora para que, desde 2014, cinema e jogos eletrônicos vivam um estreitamento contínuo de laços. E não só comerciais, mas principalmente criativos.

Como escreveu Arthur Eloi, aqui no Omelete, em 2020, “nos últimos anos, videogames se aproximaram do restante do audiovisual. O avanço tecnológico permitiu que jogos criassem mundos e humanos com altíssima fidelidade, o que pediu por maior amadurecimento nas tramas, roteiros e atuações. Esse processo foi norteado pela já desenvolvida linguagem cinematográfica, algo bastante presente em nomes como The Last of Us e God of War. Postulando uma vindoura dominação de Hollywood por adaptações de games mais sérias e bem produzidas, o jornalista destacou não só o envolvimento de estrelas como Norman Reedus (The Walking Dead), Mads Mikkelsen (Hannibal), Margaret Qualley (Era Uma Vez em Hollywood), Léa Seydoux (Azul é a Cor Mais Quente) e até os diretores Nicolas Winding Refn e Guillermo del Toro, em um game como Death Stranding, de Hideo Kojima, como também o emprego da engine gráfica (o sistema que faz funcionar as funções visuais e mecânicas de um game) Unreal Engine, usada em títulos como God of War e Fortnite, na tecnologia revolucionária de cenários nas séries de TV The Mandalorian e Obi-Wan Kenobi. O avanço narrativo nas tramas interativas dos consoles também é notável, muito graças ao emprego de mais e mais roteiristas com experiência em cinema, TV e literatura. “São games que não apenas trazem jogabilidades interessantes, mas envolvem o jogador em mitologias próprias. Que fazem as pessoas não apenas se emocionarem ao jogar, mas também ao pensar naquilo, ao pensar nos personagens e torcerem por eles”, resume Miyazawa.

Assim, para o cinema de games, as décadas de 2010 e 2020 têm se conectado graças a uma crescente diversidade de formatos e ofertas — um movimento que começou com um thriller bem produzido, mas desprovido de emoção, sobre corridas de carros, em Need for Speed - O Filme (2014); passou por uma superprodução tão épica quanto ambiciosa (e, talvez, tediosa) de um dos mais tradicionais MMORPG de todos os tempos, em Warcraft - O Primeiro Encontro de Dois Mundos (2016); e desembocou em um filme do ouriço velocista Sonic que segue entre as três maiores bilheterias no Brasil há praticamente dois meses: Sonic 2: O Filme (2022). Ao mesmo tempo, houve espaço para a repetição de bombas ultrapassadas como Hitman: Agente 47 (2015) e Dead Trigger: Tiroteio Zumbi (2019); o apelo meio nostálgico e meio revisionista de novas versões de Tomb Raider: A Origem (2018), Mortal Kombat (2021) e Resident Evil: Bem-Vindo a Raccoon City (2021); e o escopo familiar de uma animação como Angry Birds 2: O Filme (2019). Até o obscuro game de realidade virtual Werewolves Within, da Red Storm Entertainment, virou filme: Um Lobo Entre Nós (2021), a adaptação de game mais bem avaliada de todos os tempos (86% no Rotten Tomatoes). O mais importante de tudo isso, no entanto, é o seguinte: nunca antes se abordou com tanta frequência, seriedade e interesse as adaptações de games. E nunca se discutiu com tanto afinco diferentes perspectivas sobre um mesmo filme de game — já que, antes, as queixas em uníssono eram muito mais frequentes.

Um exemplo dessa resposta mais quente às produções são os posicionamentos distintos que surgem a partir de uma simples pergunta sobre Warcraft. “Um filme que certamente não é um bom filme, certamente não é uma execução primorosa e que tem mil defeitos — mas tem uma alegria humana por trás, tem o prazer de quem está fazendo o filme — é o Warcraft, defende Boscov. Load, por outro lado, não guarda grandes memórias do longa dirigido por Duncan Jones: “Eu lembro que eu fui ver no cinema, não conhecia o jogo, então estava com a expectativa de entrar no universo. Só que foi tão tedioso que eu dormi na sessão. Matou totalmente o meu interesse pelo game”. Já Penilhas destaca o espetáculo visual vindo dos efeitos assinados pela Industrial Light and Magic (e proporcionados pelo orçamento de US$160 milhões), mas só. “Em termos de computação gráfica, de produção, o filme é muito bom, mas eu achei que é um daqueles filmes repletos de vergonha alheia, sabe? Não me cativou de jeito nenhum”, reclama. Onde o trio concorda sem pestanejar é na opinião descontente com Assassin’s Creed (2016), adaptação do game de sucesso da Ubisoft que provocou uma das maiores decepções da última década para seus fãs. “Completamente inane”, fala Boscov. “Não me pegou”, crava Penilhas. “Muito ruim”, avalia Load.

Entre o criador de conteúdo e a editora, há consenso também quando se fala nos filmes do Sonic (incluindo a eterna celebração pelo cancelamento do chamado “Sonic Feio”) e em Detetive Pikachu (2019). Sobre o longa de Pokémon, Penilhas afirma: “O filme que mais conseguiu trazer algo novo para a franquia”, enquanto destaca como a fórmula se repete com o ouriço: “Eu gostei muito de como foi feito ali, que segue a pegada do Detetive Pikachu e a gente vê a mistura do live-action com as animações”. Load também faz a ponte entre as produções: “Eu acho que Sonic e Sonic 2 abriram legal esse leque de possibilidades bacanas do universo fantástico sem precisar ser tão fiel ao que a gente tá acostumado nos jogos. E eu me surpreendi demais, porque acho que também veio um pouco da carga de Detetive Pikachu”. O sentimento de ambos é o contrário quando se fala em Uncharted: Fora do Mapa (2022), uma produção que parece resgatar a fórmula do astro como justificativa para ter relevância. “Tenho certeza que o fato do filme ter saído junto com Homem-Aranha, e o fato do Tom Holland ser um dos atores mais amados do momento, provavelmente chamou mais atenção para o filme do que o game em si”, observa Penilhas. “É um filme que eu nem fui assistir, porque muitos dos meus amigos já alertavam que o ator não entregava o personagem como nos games”, acrescenta Load.

OS MAIORES HERÓIS

Os cinco melhores filmes de games, segundo a crítica

BONUS ROUND: FILMES SOBRE GAMES

Se 1993 é quando Hollywood pressiona “start” em sua produção de filmes de games, os filmes sobre a cultura dos videogames são uma constante há muito mais tempo. Mais de 10 anos antes, por exemplo, Tron - Uma Odisséia Eletrônica (1982) lançava Jeff Bridges dentro do mundo virtual e tentava retratar de forma cinematográfica a aura de mistério que os jogos eletrônicos ainda tinham frente ao grande público. “Ele ainda é um dos filmes tecnológicos mais aclamados da história, justamente por tudo que conquistou em efeitos visuais e inventividade, naquela época. Tron é muito diferente de qualquer coisa que havia na década de 1980. É impossível compará-lo com filmes mais recentes, porque a fórmula mudou”, pontua Penilhas. “Tem um outro exemplo de filme que pega a estética dos games e essa ideia de que quem joga videogame é hacker e não consegue se misturar: Jogos de Guerra [1983], acrescenta Miyazawa. “São filmes datados, que tratam videogame ainda como esse grande mistério, essa coisa que pode ser nociva. Eu acho interessante eles serem assistidos hoje para entender como a gente evoluiu, nesse sentido”.

E essa evolução está por toda a parte, já que hoje a cultura dos videogames é tão natural ao dia-a-dia que dá as caras até em uma sátira sobre o mundo das animações. “O filme do Tico e Teco [2022] faz essa coisa de imaginar o que os personagens animados fariam em situações inusitadas”, aponta Load. “E o Sonic Feio tá lá! Ele é uma piada do filme. É um caminho similar ao que fez Detona Ralph [2012], que a gente foi assistir por causa dos easter eggs e da premissa de como ficam os personagens de game de um fliperama depois que ele fecha”. De fato, a animação da Disney não só parodia alguns dos mais icônicos personagens dos jogos eletrônicos, como conta com inúmeras participações especiais de propriedades icônicas da indústria. Para Boscov, “esses filmes talvez se saiam um pouco melhor [com crítica e público] mesmo que não sejam marcos do processo artístico e cinematográficos, porque eles não estão amarrados diretamente a um produto”.

Existem exceções, como a frenética paródia dos fliperamas de luta dirigida por Edgar Wright em Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) — uma adaptação da série de livros de Bryan Lee O'Malley —, ou outra adaptação literária, essa dirigida por Steven Spielberg, Jogador Nº 1 (2018). No geral, entretanto, é mais comum que surjam produções como Free Guy - Assumindo o Controle (2021): grandes “faz-me-rir” descompromissados, que tiram onda com os joguinhos. “Sobre filmes que se apropriam dos games para contar histórias, como Tron, Free Guy, ou mesmo aquele outro filme ruim do Adam Sandler, Pixels, eu penso que a cultura gamer é muito rica, muito interessante, sempre vai ter boas histórias para se contar baseado nela”, reflete Miyazawa. “Então, eu não acho errado pegar essa cultura e tentar transportá-la para as telas, criando uma associação direta com o público. Porque o público gamer é muito chato, é muito exigente. Ele vai sacar se aquilo não está sendo feito com a vibração necessária, e o humor é um jeito mais fácil de você abordar de uma forma leve e sincera”.

DLC: OS GAMES NA TV

Adaptações de games desenvolvidas para a TV também têm ganhado cada vez mais força nos últimos anos, transcendendo com ambiciosos projetos em live-action, ou em animação ocidental, um cenário marcado pela até então ímpar competência dos animes em traduzir mundos virtuais. Quantas pessoas por aí não pensam que franquias como Pokémon ou Digimon nasceram nas TVs, e só depois foram transformadas em jogos? “A estética dos animes é muito reminiscente dos videogames, e vice-versa, já que videogames foram muito inspirados nos desenhos animados japoneses, com muitos dos principais títulos sendo produzidos no Japão; e aí um foi um bebendo da fonte do outro” explica Miyazawa. Mas com anos e anos de exemplos dados na tela pequena, não seria exclusividade das produções japonesas poder beber dessa fonte. E foi a mescla de estilos narrativos e visuais próprios a animes com influências ocidentais de trabalho em CGI e outras técnicas, o que permitiu a uma série animada franco-americana ascender, para muitos, como a melhor adaptação de games em um produto audiovisual de todos os tempos: Arcane, do universo do battle arena League of Legends (LoL), da Riot Games, produzida pela Netflix.

“Eu acho Arcane a referência número um em adaptações de games, porque eu não jogo LoL, eu não gosto de LoL, eu sei muito pouco da história de LoL, e a série conseguiu conversar comigo e com absolutamente todo o mundo”, elogia Penilhas. Load corrobora e ainda destaca a importância do boca-a-boca na hora de abraçar a produção. “Eu sou uma pessoa que não conhece muito bem o LoL, mas eu fui ver Arcane por conta tanto dos elogios do público dos games, quanto do público geral, que também foi cativado”. E, enquanto Miyazawa analisa os principais méritos da produção e volta a conectá-la aos animes (“Arcane funciona bem porque é um desenho animado. Não só porque é baseado em LoL, mas porque é um bom desenho que é baseado em League of Legends e consegue ser fiel ao que os fãs esperam. É como Pokémon), Boscov é direta:Arcane é deslumbrante. É um trabalho fabuloso”. E se tudo isso não bastar para sintetizar o sucesso colossal da animação, há sempre o especial do Omelete sobre ela (leia aqui).

Após anos de espera, 2022 viu a estreia da aguardada adaptação em live-action dos games Halo, da Microsoft, no Paramount+. Tendo passado por uma boa dose de reformulações e produzida por Steven Spielberg (que, tempos atrás, cogitou dirigir um projeto similar no cinema), a série ofereceu uma versão mais crua, sanguinolenta e menos maniqueísta do mito-base da franquia original. Ao mesmo tempo, entretanto, alienou parte de seu público ao se distanciar demais de caracterizações-chave para os fãs dos jogos — em especial com o protagonista da série, Master Chief (Pablo Schreiber). Halo foi uma série que eu não fui ver justamente porque não vi ninguém que era fã tradicional recomendando para quem é de fora”, conta Load. “Eu sinto que falta esse tipo de sugestão para atrair novo público, porque isso te leva a querer também conhecer o game”. O criador de conteúdo também falou sobre Cuphead - A Série, animação que adapta o game Cuphead: Don't Deal With The Devil, da Studio MDHR. “Também não me pegou. Eu assisti aos episódios, mas achei muito infantilizado. A gente está familiarizado com o universo do game, e quando você vai assistir a uma adaptação feita daquela forma, que surge muito boba, você nota algo que o jogo não passava. Ali, não fica nem engraçado, é só fora do tom e estranho”, classifica.

Entre erros e acertos, o fato é que mais e mais produções com recursos e cercadas de expectativas se encaminham à telinha. Na própria Netflix, casa de Arcane e Cuphead, chegará em 14 de julho uma nova série de TV de Resident Evil que promete respeitar e dar continuidade à cronologia oficial da franquia, nos jogos; a Sony prepara adaptações de games celebrados como God of War, Horizon Zero Dawn e Gran Turismo; Sonic e Pokémon ganharão novas animações; games como Mass Effect, Fallout e Twisted Metal estão na fila das adaptações; e principalmente o clássico moderno da Naughty Dog, The Last of Us, chegará à HBO em 2023. “Eu estou louca para ver a adaptação em série do The Last of Us. O que eu vi do game é tão bonito, é tão interessante, eu acho, que tem material ali para fazerem alguma coisa tão incrível. Eu estou super esperançosa”, diz Boscov. Miyazawa (“acho que tem tudo para dar certo”), Penilhas (Pedro Pascal como Joel é algo que mexe não só comigo, mas com todo mundo”) e Load (“estou muito curioso para assistir, porque é um universo muito rico”) fazem coro em empolgação.

PRÓXIMOS NÍVEIS

Em time que está ganhando, não se mexe. Logo, se os melhores filmes de games de todos os tempos saíram nos últimos três anos, não há razão para desacelerar a produção daqui para frente. Enquanto é difícil imaginar um mundo onde esse tipo de adaptação tome a dianteira em relação às de quadrinhos e livros, é certo afirmar que a jornada de expansão está só começando — e que o futuro é brilhante. Previstos para chegarem às telonas a partir do ano que vem, filmes como Borderlands (com um elenco estrelado que tem Cate Blanchett, Jack Black, Kevin Hart, entre outros), Mortal Kombat 2 e até Minecraft (com Jason Momoa) devem servir a diferentes públicos e seguir com a diversificação crescente desse tipo de projeto, desde a década de 2010. Em estágios mais iniciais de desenvolvimento, títulos como o terceiro filme de Sonic, o segundo filme de Tomb Raider, adaptações curiosas como do game colaborativo It Takes Two (produzida por The Rock) e do jogo de dança Just Dance, também acenam no horizonte.

As adaptações de game também fecharão um ciclo no ano que vem, quando chegará às telonas a animação em CGI de Mario Bros., produzida pela Illumination em parceria com a Nintendo. Será o primeiro longa-metragem do encanador de roupas vermelhas desde que Super Mario Bros. começou a escrever a história dos filmes de games lá em 1993. “Eu fiquei um pouco decepcionada quando anunciaram o elenco de dubladores, porque eu acho vai ser estranho ouvir o Chris Pratt como Super Mario”, comenta Penilhas. “Eu acho que eles quiseram fazer ali mais ou menos igual rolou com o Pikachu no Detetive Pikachu, é muito cedo para para afirmar alguma coisa. Só acho que foi uma decisão certa eles terem escolhido o caminho da animação e não tentar fazer alguma coisa live-action de novo”.

Com uma lista crescente de produções vindouras que ainda inclui títulos como Gears of War, Ghost of Tsushima, Just Cause, e Five Nights at Freddy’s, o que fica no ar é a dúvida se o pior de fato já passou, ou se Hollywood voltará a repetir erros antigos que acabaram por desgastar a boa- fé do público em geral com adaptações de games. Como aponta Miyazawa: “Existem produtos que rendem bons filmes e séries, e outros que têm que ficar no videogame mesmo. Não é porque aquilo, nos games, é realista e profundo, tem um super roteiro, que numa narrativa passiva como a de TV ou cinema vai funcionar”. Por outro lado, como aponta Boscov e já ensinava o Mortal Kombat de 1995, a perfeição é superestimada quando falamos sobre um filme poder ou não cativar o público: “Gostar de cinema é amar imperfeições. É celebrar as imperfeições e achar que filmes são interessantes por causa delas, e não apesar delas”.

Publicado 01 de Junho de 2022
Projeto gráfico Juliana Toledo | @julianatoledo22
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Coordenação Jorge Corrêa | @_jorgecorrea