O Poderoso Chefão,
50 anos depois

No aniversário do clássico, conversamos
com Francis Ford Coppola sobre o legado
de seu grande filme e a indústria do cinema

Marcelo Forlani e Pedro Strazza

O Poderoso Chefão é um filme que se mantém no status de obra-prima máxima do cinema hollywoodiano independente da época. Entre seu lançamento em 1972 aos dias de hoje, a produção não apenas acumulou todas as honrarias da indústria como se solidificou como uma referência imediata para todos os assuntos envolvendo cinema. Para muitos, afinal, está tudo lá: as composições brilhantes da fotografia, o drama familiar refinado a um ideal de nobreza, as atuações maiores que uma vida, todos os elementos clássicos do que se convencionou a considerar a boa prática da sétima arte.

Para Francis Ford Coppola, porém, essa extensão do sucesso do filme na atualidade era impensável. “Eu não esperava por este momento, cinquenta anos depois” verbaliza o diretor ao Omelete, logo após recordar do histórico difícil da produção do longa-metragem. “Fazer o primeiro O Poderoso Chefão foi uma experiência muito turbulenta para mim porque claramente fazíamos algo que podia ser chamado de novo”, diz o lendário diretor; “Na época, porém, quando você faz coisas que são novas, você estava batendo de frente com o que o estúdio queria”.

Coppola não mente. Embora a recepção tenha sido a mais quente possível no lançamento e a produção tenha se tornado em menos de um semestre a maior bilheteria da história dos Estados Unidos, superando o até então imbatível …E O Vento Levou, O Poderoso Chefão foi fruto sobretudo de todos os atritos derivados da Hollywood da época, então imersa no olho do furacão da crise dos estúdios e tomada por uma nova geração de diretores que, inspirados na liberdade da Nouvelle Vague e do cinema europeu, provocavam mudanças drásticas a torto e direito.

O Poderoso Chefão claramente não era algo que eles esperavam, ninguém achava que ia ser um sucesso. Se você me falasse naquele momento que as pessoas iam considerar aquilo um bom filme, ou mesmo um ótimo filme, eu teria ficado em choque.
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Francis Ford Coppola, ao Omelete

Começo atribulado

Apesar do cenário de alta ebulição do meio, a produção de O Poderoso Chefão do princípio foi tomada pelo caos. Com os direitos do livro homônimo de Mario Puzo comprados logo após o mesmo se tornar um best seller indiscutível, a Paramount Pictures – até a contratação de Coppola – tinha um desejo bem mais superficial com a produção, adequado às noções tradicionais da indústria de tornar hits do mercado editorial em filmes na esperança de garantir parte do sucesso financeiro prometido pela base de leitores criada.

O diretor inclusive só foi escolhido depois do material circular por inúmeros nomes (incluindo amigos como Peter Bogdanovich) e da direção do estúdio desejar um nome de “ascendência italiana” para ajudar a diferenciar o projeto do grosso de filmes de gângster - na visão conservadora da Hollywood de então, era comum que cineastas judeus trabalhassem em projetos do tipo. A aposta em Coppola foi arriscada: com apenas três lançamentos comerciais assinados – todos fracassos de bilheteria – o cineasta também era atormentado pela derrocada da Zoetrope, estúdio que fundou com o amigo George Lucas e nutria a missão maior de uma Hollywood mais aberta a nomes independentes, produzindo e distribuindo com as próprias mãos projetos do tipo.

O início turbulento, porém, gerou dívidas imensas ao diretor, e a necessidade de pagar US$ 300 mil dólares só à Warner Bros. o forçou a aceitar a contragosto o trabalho – menor ao seus olhos, dado que era uma adaptação distante dos trabalhos originais dos franceses. “Eu só estava preocupado sobre como ia conseguir sustentar minha família” comenta ao Omelete, citando ainda o nascimento da filha (e hoje diretora) Sofia Coppola como um agravante nessa equação: “Eu tinha um novo bebê, eu tinha três filhos e eu não tinha qualquer dinheiro”.

Passado esse momento de negação, entretanto, Coppola viu o potencial do livro de Puzo para retornar a um ideal de cinema muito abandonado no cinema norte-americano. “O filme que eu aspirava na cabeça naquela época era algo parecido com o clássico, mais formal no estilo, e cujo tema seria o de sucessão. Eu sempre imaginei como a história de um rei shakespeariano que tinha três filhos. Cada um deles tinha uma determinada qualidade, mas nenhum possuía todas”, relembra.

Esse desejo com naturalidade o levou a combater as ânsias do estúdio, até porque a expectativa era de um projeto barato e oportunista. Mesmo sob a supervisão de Al Ruddy e Gary Frederickson, produtores conhecidos por manter criativos sob controle no financeiro, Coppola na época conseguiu uma ampliação de orçamento que permitisse filmar uma história situada nos anos 40 em locação em Nova York. Durante toda a produção, Coppola e Robert Evans, então diretor da Paramount, brigaram em todos os departamentos, numa guerra que muitas vezes é descrita como a batalha entre o estilo da velha Hollywood e as ideias da nova.

Isso inclui até mesmo o elenco. Além do cineasta, ninguém queria o desconhecido e mirrado Al Pacino para o papel de Michael, e Marlon Brando ainda era visto como “ator problema” que nunca seria capaz de dar vida ao ameaçador Vito Corleone - um executivo da Paramount chegou a berrar que Brando nunca seria o chefão de O Poderoso Chefão. Com o atraso das filmagens, a fotografia escura e avessa a modernismos de Gordon Willis conflitando com os interesses imediatos, e uma duração de três horas inviabilizando mais sessões no circuito, tudo apontava para um cenário de desastre.

Mas todas as apostas de Coppola compensaram, e ainda hoje ele vê com clareza o porquê desse mérito. “Não deveria ser surpreendente que um filme que lida com temas importantes em um estilo clássico, com excelentes atores, possa viver cinquenta anos” afirma durante a conversa, citando ainda obras da literatura como a Ilíada, a Odisseia e os pergaminhos sobre a vida do rei sumério Gilgamés como exemplos do que o público ainda procura quando está atrás de “temas humanos fundamentais” na literatura.

Tão diferente, tão igual...

O mais fascinante é que Coppola, cinquenta anos depois de todo esse processo, segue muito consciente de que a produção de O Poderoso Chefão não foi algo isolado. Além de voltar a garantir que não tem qualquer interesse em mexer no primeiro filme da trilogia — “Eu posso ter minhas questões sobre algumas decisões, mas sigo muito satisfeito com o resultado” — o diretor também diz que o cenário hoje não é muito diferente dos anos 70 em termos de produzir algo artístico em um meio tão comercial.

Algo que brinco com estudantes de cinema é dizer que as mesmas razões que o levam a ganhar prêmios pelo conjunto da carreira são os mesmos que o fazem ser demitido na época”, afirma o cineasta, que considera tudo um dilema: “Estar adiantado em uma inovação ou na evolução de um estilo, ser o primeiro pintor a trabalhar com pinturas abstratas ou com o expressionismo, ou no meu caso, se fosse fazer um filme sobre o que meus sonhos realmente são, seria bem mais difícil de obter financiamento, mas seria algo que viveria mais tempo”.

Coppola cita inúmeros exemplos históricos dessa reincidência, de Orson Welles e Glauber Rocha ao húngaro Ferenc Molnár e sua peça Liliom, passando até mesmo pela ópera Carmen. “O grande compositor Georges Bizet foi tão vaiado e ridicularizado que morreu acreditando que aquela era seu maior fracasso, enquanto hoje Carmen é a ópera mais popular de todo o repertório”, argumenta durante a conversa. “Como se lida com isso, que a única coisa que confirma o valor de uma obra de arte é o teste do tempo? No meu caso, tive muita sorte porque mesmo que de vez em quando alguns dos meus filmes tenham sido muito criticados ou ridicularizados, com o tempo eles se tornaram respeitados, e isso é muito gratificante”.

Ele também vê nos grandes lançamentos de hoje essa tendência, ainda que lamente mais por justamente ver produções originais serem obrigadas a se adequar aos conformes. Isso inclui obviamente Megalopolis, projeto que há anos busca realizar e recentemente conseguiu financiamento, mas também envolve sucesso maiores do circuito como Duna e 007: Sem Tempo Para Morrer:

Um filme contemporâneo como o novo Duna conta com artistas muitíssimos talentosos, mas é basicamente uma repetição", diz. "Se você olhar com atenção, você vê muito do que já viu antes, como acidentes de carro, quedas de helicóptero, tudo isso são ideias já utilizadas. Para mim, é um desperdício de talento: os diretores claramente têm muito talento, assim como o elenco, mas o filme não me engaja, eles não aproveitaram a oportunidade para fazer algo realmente contemporâneo, o que eles podiam ter feito. Mesmo um filme que custa US$ 250 milhões como o novo James Bond, [nele] há muita imaginação e um diretor maravilhoso, mas se eu levá-lo a uma ilha de edição, cortar coisas de Duna e cenas do novo Bond, elas serão as mesmas cenas. E você precisa disso, porque é o que te garante o financiamento e distribuição. É uma pena”.

Mas é justo na própria carreira que o diretor comenta com maior precisão todo esse processo: “Quando lancei O Poderoso Chefão Parte II, eu estava no topo do mundo. Eu era jovem, havia feito dois filmes que foram muito bem sucedidos, havia vencido os maiores prêmios possíveis, eu tinha cinco prêmios Oscar… e ainda assim, no ano seguinte, quando tentei fazer Apocalypse Now, ninguém queria me produzir. O fato de eu ter tido tanto sucesso e tantos Oscar não me ajudaram em nada. O fato de eu ser dono de Apocalypse Now hoje, inclusive, é porque eu era o único que queria fazê-lo”.

Jon Kopaloff / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Um homem em sintonia com o tempo

Enquanto toda discussão sobre produção e o fazer artístico desperta um lado mais sóbrio do realizador, ele ainda vê com bons olhos a permanência do sucesso de O Poderoso Chefão na cultura pop. Isso inclui as restaurações do filme, que agora em 2022 ganha pela primeira uma versão remasterizada para o 4K, ao qual Coppola se refere como a “mais bonita que já houve desde a impressão original dos rolos no velho processo da Technicolor”.

A cada geração, se aprende e melhora os métodos de preservação, então nós somos capazes com o 4K e o 8K a melhorar restaurações destes filmes” diz o diretor, que também destaca o valor que as novas tecnologias dão ao trabalho de Gordon Willis no filme, cuja fotografia ele descreve como “ousada” e capaz de “brincar com a escuridão que permitia verbalizar o limite da emoção em cena”. Coppola valoriza tudo isso sobretudo por entender que tanto o primeiro quanto o segundo O Poderoso Chefão são criaturas de um passado que não mais retorna… literalmente: “A parte II foi o último filme feito nas velhas máquinas tricolor da Technicolor. Quando o filme estava pronto, eles empacotaram o equipamento e o venderam para a China, então não tínhamos mais a tecnologia, mesmo existindo na Itália por um tempo. Aquele método clássico de fazer cinema, com três faixas de cor primárias, basicamente não existe mais - talvez na China, onde ainda há quem possa trabalhar com isso, mas aí já não sei”.

Com todas essas questões, fascina que o cineasta diga manter grande admiração pelas novas gerações. Perguntado pelo Omelete, Coppola garante que um jovem de catorze anos de hoje seja capaz de se maravilhar com o filme que fez meio século atrás, mas lamenta que a sociedade não se engaje com os mais novos para além do esforço de vender coisas: “As crianças deveriam ser felizes, mas também deveriam ter a chance de serem profundas, e nós não lhe damos a oportunidade de participar na vida com a gente, então muitas não aparentam estar qualificadas para ver um filme mais adulto. Mas eu tenho certeza que os 14 anos são uma idade onde eles começam a serem capazes de dar bons conselhos, e nós deveríamos ouvir os jovens de 14 anos pois eles tem muito a dizer se nós dermos a chance”.

Como o próprio filme, Francis Ford Coppola segue em dia com o mundo e seus rumos.

Publicado 24 de Fevereiro de 2022
Reportagem e texto final Pedro Strazza | @pedrosazevedo
Entrevista Marcelo Forlani | @forlani
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Arte de capa Paola Murbach | @paprycca
Coordenação Jorge Corrêa | @jorgecorrea_