“Era o bicho-papão”. A frase balbuciada pela jovem babá Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) no clássico Halloween (1978), de John Carpenter, vai muito além do óbvio. Seja no inglês, boogeyman, ou sob as alcunhas de papa-gente, papa-figo, bitu, tutu ou manjaléu, essa entidade fictícia, criada para botar medo em crianças levadas, é definida como a encarnação desencarnada do medo; disforme, insípida e incolor. Tal qual a máscara branca e inexpressiva do psicopata Michael Myers, a natureza do sentimento de desespero por ele desperta reza na liberdade que confere àquele que o encara – a liberdade para ali projetar aquilo que mais o assusta. Se a noção de medo é subjetiva, não há monstro mais implacável do que o que age nessa mesma camada da percepção humana.
É por isso que, historicamente, o terror trabalha em constante evolução e revolução. Dependente por definição de despertar a empatia do público para ser eficiente em seu objetivo – o de assustar –, ele precisa manter-se alinhado e afinado com o espírito de sua época. Assim, das experimentações do lendário Georges Meliés com espíritos e esqueletos em La Caverne Maudite (1898), a Alfred Hitchcock levando o terror ao Oscar com seu Psicose (1960), chegando até hoje, com Jordan Peele fazendo do subtexto social texto explícito em Corra (2017), o gênero sempre viu e verá aflições reais refletidas em seus respectivos monstros fictícios.
Entra 2021 e traz consigo o retorno de dois deles, que estamparam pôsteres e roubaram pessoas de seu sono tranquilo em diferentes décadas do passado. Como renascidos do inferno (ao menos o do desenvolvimento criativo), Candyman e o próprio Michael Myers protagonizam neste ano dois dos principais filmes de terror lançados em Hollywood. Ambos frutos de um mesmo ciclo nas constantes mudanças do gênero, eles bebem de influências distintas para apagar do cânone de suas respectivas franquias aqueles títulos que, de alguma forma, desviaram os rumos da história contada para destinos indesejáveis. A Lenda de Candyman, lançado em agosto, funciona como sequência direta do filme original O Mistério de Candyman (1992), enquanto ignora as sequências Candyman 2 - A Vingança (1995) e Candyman 3 - Dia dos Mortos (1999). Já Halloween Kills: O Terror Continua, que chegou às telonas em outubro, continua do ponto que parou Halloween (2018), o reboot da saga de Carpenter que viu ignorados todos os nove filmes lançados desde 1978 – incluindo os remakes dirigidos por Rob Zombie.
Com direção assinada por Nia DaCosta e produção da Monkeypaw Productions, de Peele, o novo Candyman traz em primeiro plano uma narrativa antirracista, que reposiciona a assombração-título como um representante das estruturas de poder corrompidas da sociedade norte-americana ocidental. Com o racismo como alvo principal da crítica, o filme ainda cobre desigualdade social e de gênero, enquanto cumpre o papel de abrir os horizontes da franquia para mais histórias. Já a dupla de novos Halloween, executados pelo cineasta David Gordon Green e produzidos pela Blumhouse Productions, de Jason Blum, se propõe a resgatar e modernizar a essência do subgênero slasher. Essas histórias de maníacos e sanguinários predadores encontram-se, neles, com a temática do embate geracional familiar, da representatividade feminina e da exploração dos efeitos do trauma. Em Halloween Kills, parte significativa do tempo de tela é dedicada a uma tentativa de incluir nessa lista o chamado “comportamento de manada”; termo usado para descrever situações em que indivíduos em grupo reagem todos da mesma forma a uma determinada situação, embora não exista direção planejada.
Esse retorno encorpado de franquias consagradas acontece, não por acaso, após uma década que viu o surgimento e popularização do que que críticos e acadêmicos passaram a chamar de “pós-horror”. Termo usado tanto para definir filmes de terror com clara mensagem social quanto aqueles que mesclam a estética do “cinema de arte” às convenções do “cinema de susto”, esse ciclo foi responsável por levar ao público mainstream experimentações antes relegadas apenas aos olhares de fãs mais assíduos do gênero. Ainda assim, sua definição é causa de confusão e discórdia entre muitos espectadores, com até mesmo o próprio John Carpenter se somando àqueles que veem nele um mero escape para que a crítica possa valorizar um estilo de narrativa historicamente marginalizado.
Ver tanto Candyman quanto Halloween beberem igualmente de referências clássicas e modernas para manter relevantes suas histórias, portanto, é o terror mais uma vez se reinventando para seguir acompanhando os anseios do público – e em um movimento que está só começando. Na esteira do sucesso milionário das mais recentes facadas de Michael Myers, chegam novos capítulos de franquias como Pânico, Hellraiser, Brinquedo Assassino, Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado e até Resident Evil. Não quer dizer que esses (quase literalmente) monstros sagrados do gênero tenham se inspirado ou irão se inspirar diretamente em filmes como A Bruxa (2015) ou Hereditário (2018), mas sim que dialogar com o seu próprio passado passa pelo processo de ter de compreender também o passado do gênero como um todo; incluindo o mais recente. Em suma, se trata de mais um desdobramento em uma linha do tempo que se viu em constante e orgânica mudança desde sua gênese, mais de um século atrás.