O Novo Velho Terror

Como clássicos do gênero têm voltado à vida apagando erros do passado e abrindo
novos horizontes em um cenário moderno cada vez mais rico de opções

Eduardo Pereira | @eduperazeda Repórter

“Era o bicho-papão”. A frase balbuciada pela jovem babá Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) no clássico Halloween (1978), de John Carpenter, vai muito além do óbvio. Seja no inglês, boogeyman, ou sob as alcunhas de papa-gente, papa-figo, bitu, tutu ou manjaléu, essa entidade fictícia, criada para botar medo em crianças levadas, é definida como a encarnação desencarnada do medo; disforme, insípida e incolor. Tal qual a máscara branca e inexpressiva do psicopata Michael Myers, a natureza do sentimento de desespero por ele desperta reza na liberdade que confere àquele que o encara – a liberdade para ali projetar aquilo que mais o assusta. Se a noção de medo é subjetiva, não há monstro mais implacável do que o que age nessa mesma camada da percepção humana.

É por isso que, historicamente, o terror trabalha em constante evolução e revolução. Dependente por definição de despertar a empatia do público para ser eficiente em seu objetivo – o de assustar –, ele precisa manter-se alinhado e afinado com o espírito de sua época. Assim, das experimentações do lendário Georges Meliés com espíritos e esqueletos em La Caverne Maudite (1898), a Alfred Hitchcock levando o terror ao Oscar com seu Psicose (1960), chegando até hoje, com Jordan Peele fazendo do subtexto social texto explícito em Corra (2017), o gênero sempre viu e verá aflições reais refletidas em seus respectivos monstros fictícios.

Entra 2021 e traz consigo o retorno de dois deles, que estamparam pôsteres e roubaram pessoas de seu sono tranquilo em diferentes décadas do passado. Como renascidos do inferno (ao menos o do desenvolvimento criativo), Candyman e o próprio Michael Myers protagonizam neste ano dois dos principais filmes de terror lançados em Hollywood. Ambos frutos de um mesmo ciclo nas constantes mudanças do gênero, eles bebem de influências distintas para apagar do cânone de suas respectivas franquias aqueles títulos que, de alguma forma, desviaram os rumos da história contada para destinos indesejáveis. A Lenda de Candyman, lançado em agosto, funciona como sequência direta do filme original O Mistério de Candyman (1992), enquanto ignora as sequências Candyman 2 - A Vingança (1995) e Candyman 3 - Dia dos Mortos (1999). Já Halloween Kills: O Terror Continua, que chegou às telonas em outubro, continua do ponto que parou Halloween (2018), o reboot da saga de Carpenter que viu ignorados todos os nove filmes lançados desde 1978 – incluindo os remakes dirigidos por Rob Zombie.

Com direção assinada por Nia DaCosta e produção da Monkeypaw Productions, de Peele, o novo Candyman traz em primeiro plano uma narrativa antirracista, que reposiciona a assombração-título como um representante das estruturas de poder corrompidas da sociedade norte-americana ocidental. Com o racismo como alvo principal da crítica, o filme ainda cobre desigualdade social e de gênero, enquanto cumpre o papel de abrir os horizontes da franquia para mais histórias. Já a dupla de novos Halloween, executados pelo cineasta David Gordon Green e produzidos pela Blumhouse Productions, de Jason Blum, se propõe a resgatar e modernizar a essência do subgênero slasher. Essas histórias de maníacos e sanguinários predadores encontram-se, neles, com a temática do embate geracional familiar, da representatividade feminina e da exploração dos efeitos do trauma. Em Halloween Kills, parte significativa do tempo de tela é dedicada a uma tentativa de incluir nessa lista o chamado “comportamento de manada”; termo usado para descrever situações em que indivíduos em grupo reagem todos da mesma forma a uma determinada situação, embora não exista direção planejada.

Esse retorno encorpado de franquias consagradas acontece, não por acaso, após uma década que viu o surgimento e popularização do que que críticos e acadêmicos passaram a chamar de “pós-horror”. Termo usado tanto para definir filmes de terror com clara mensagem social quanto aqueles que mesclam a estética do “cinema de arte” às convenções do “cinema de susto”, esse ciclo foi responsável por levar ao público mainstream experimentações antes relegadas apenas aos olhares de fãs mais assíduos do gênero. Ainda assim, sua definição é causa de confusão e discórdia entre muitos espectadores, com até mesmo o próprio John Carpenter se somando àqueles que veem nele um mero escape para que a crítica possa valorizar um estilo de narrativa historicamente marginalizado.

Ver tanto Candyman quanto Halloween beberem igualmente de referências clássicas e modernas para manter relevantes suas histórias, portanto, é o terror mais uma vez se reinventando para seguir acompanhando os anseios do público – e em um movimento que está só começando. Na esteira do sucesso milionário das mais recentes facadas de Michael Myers, chegam novos capítulos de franquias como Pânico, Hellraiser, Brinquedo Assassino, Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado e até Resident Evil. Não quer dizer que esses (quase literalmente) monstros sagrados do gênero tenham se inspirado ou irão se inspirar diretamente em filmes como A Bruxa (2015) ou Hereditário (2018), mas sim que dialogar com o seu próprio passado passa pelo processo de ter de compreender também o passado do gênero como um todo; incluindo o mais recente. Em suma, se trata de mais um desdobramento em uma linha do tempo que se viu em constante e orgânica mudança desde sua gênese, mais de um século atrás.

A24, CASA DO PÓS-HORROR

“Eu vejo os filmes do ‘pós-horror’, ou ‘horror elevado’, como uma onda de filmes que combinam tropos de terror com características estéticas, temas sérios e a ambiguidade narrativa de filmes de arte minimalistas”. A definição vem de David Church, acadêmico norte-americano de cinema e mídia e autor do livro Post-Horror: Art, Genre and Cultural Elevation. Segundo ele, filmes que se adequam a essa nomenclatura “costumam parecer mais investidos em explorar temas sobre morte e luto” do que em proporcionar uma experiência de divertimento e expurgo de paranóias. Como o próprio Church explica, entretanto, o termo foi na realidade a forma que o jornalista Steve Rose, do jornal britânico The Guardian, encontrou para nomear filmes que desafiam regras clássicas do terror.

Rose cobria a repercussão difusa ao lançamento de Ao Cair da Noite(2017), terror do diretor Trey Edward Shults produzido e distribuído pela A24. Cativados por um trailer sombrio sobre uma família isolada em uma casa por uma peste misteriosa, muitos fãs do gênero foram aos cinemas esperando fortes sustos, mas encontraram surpresa e frustração na fórmula menos óbvia da produtora norte-americana. Fundada em 2012 por Daniel Katz, David Fenkel, e John Hodges, essa ainda jovem companhia de entretenimento vem desde 2013 dando liberdade a novos cineastas para que se apropriem das convenções do horror e as usem na exploração de temas pessoais, sociais ou políticos. À época do nascimento do “pós-horror”, a então chamada A24 Films já fazia o que o termo se propunha a nomear desde Sob a Pele (2013), passando por A Bruxa(2015), Um Monstro no Caminho (2016) e até Krisha (2016), do próprio Shults.

Isso é porque o “pós-horror” existe muito mais como definição de uma tendência de mercado do que como uma novidade concreta no gênero. Como explica o jornalista Marcelo Milici, fundador do site especializado em horror Boca do Inferno, o estilo ao qual é relegada essa alcunha sempre existiu. “Basta lembrar da filmografia de Ingmar Bergman. A Hora do Lobo, por exemplo, é do mesmo ano de A Noite dos Mortos-Vivos [ambos lançados em 1968]; e O Sétimo Selo (1957) é anterior, ambos com suas cargas sociais”, explica. “A diferença está no rótulo e não em seu trato ou conteúdo”. A opinião ecoa nos pensamentos de Church, que remete à era do Expressionismo Alemão para apontar a frequente aproximação entre o arthouse e o cinema de gênero: “Há uma longa história de filmes de arte e de terror tirando inspiração um do outro, remontando até O Gabinete do Dr. Cagliari (1920), então eu vejo essa tendência recente do ‘pós-horror’ como um surto notável em uma tradição de terror-arte que sempre foi parte do gênero”, afirma.

Assim, a razão do termo “pós-horror” ter se tornado tão relevante em discussões sobre terror na última década é porque ele encapsula a convergência de um estilo histórico, mas menos popular de cinema do gênero, com formatos de venda que atraíram a atenção do grande público. “Esses novos filmes de terror-arte distribuídos por companhias como a A24 chegaram às grandes redes de cinema e streaming, assim tendo mais exposição que similares do passado que acabaram chegando apenas ao público do arthouse e fãs mais fervorosos de horror”, define Church. O lado menos positivo da moeda, ele explica, é que com essa popularização há de se desenhar o mesmo desgaste que acometeu exemplares mais formulaicos do gênero. “Aos poucos, mais do grande público irá saber o que esperar desses filmes, mas isso também significa que o pós-horror se tornará mais e mais repetitivo e previsível”, conclui o autor.

BLUMHOUSE: TERROR RAIZ

“Me lembro quando fui assistir a A Bruxa, do Robert Eggers, no cinema. Na época, o filme era o mais comentado do momento, como uma verdadeira revolução do horror”, lembra a escritora e publicitária Larissa Palmieri, roteirista em HQs antológicas de terror como Frankenstein, VHS e Delirium Tremens. “Nunca me esqueço da decepção do público na saída do filme, pois todos esperavam jumpscares intensos, mas a experiência do filme em si são as cenas que alugam o seu cérebro por semanas”, adiciona. Um dos mais emblemáticos exemplares do pós-horror da A24 é também um grande exemplo da falta de sinergia entre crítica e público nos anos iniciais dessa onda do gênero: no agregador de avaliações Rotten Tomatoes, o filme de 2015 ostenta 90% de aprovação entre a crítica especializada, enquanto amarga 59% entre o grande público.

É na contramão dessa dissonância que emerge o pólo oposto à A24 na crescente oferta moderna de filmes de terror independentes. Desde Atividade Paranormal (2007), com o investimento de meros US$15 mil dólares para um retorno de US$193 milhões no mundo todo, Jason Blum solidificou um modelo milionário de negócios que elevou a Blumhouse Productions ao status de colosso do horror de baixo e médio orçamento. Sem medo de abraçar clichês e investir simultaneamente em toda sorte de subgênero possível, o estúdio parece ter encontrado um caminho certo para o bolso do público, ao mesmo tempo oferecendo boa medida de subversões para manter a crítica desprovida de animosidade.

Assim, ao mesmo tempo em que explora os sustos baratos e reviravoltas por vezes repetitivas das sequências intermináveis do filme de 2007, a Blumhouse investe em parcerias com cineastas respaldados como James Wan, em Sobrenatural (2010), Scott Derrickson, em A Entidade (2012) e M. Night Shyamalan, em A Visita (2015). É por meio dessa estratégia que o selo soma à sua filmografia diversos exemplos sólidos de filmes de terror mais tradicionais – e, por definição, mais populares. Como observa Milici, “um público que se sacia com as comédias de terror A Morte Te Dá Parabéns (2019) e Freaky - No Corpo de Um Assassino (2020) pode não enxergar com os mesmos olhos um filme com força social como os de Jordan Peele. Certa está a Blumhouse em fragmentar sua produção ao invés de se dedicar a um único nicho, permitindo que atendam a espectadores distintos”.

Parcerias como a que Jason Blum firmou em Corra e em Nós (2019), aliás, são exemplos do que estreitam os paralelos entre a Blumhouse e a A24, reforçando a ideia de que o “pós-horror” é um demonstrativo mais evidente de algo que o gênero sempre fez. Seja com críticas frontais à desigualdade racial nos Estados Unidos, como nos longas de Peele, ou com o subtexto anti-conservador e anti-armamentista da franquia Uma Noite de Crime, a produtora deixa claro que não precisa categorizar seus filmes como nada além de terror para incluir neles mensagens políticas enfáticas e atuais. De quebra, ainda exalta uma verdade por vezes ignorada pelo descaso histórico de críticos perante o gênero: ele é provavelmente o mais adequado para abraçar essas temáticas. Como frisa Palmieri, “o horror oferece um exercício extremo de empatia do espectador. Por isso as críticas sociais são muito fortes: não há forma de entender os nossos problemas sociais sem a habilidade de se colocar na dor do outro”.

TERRORZÃO NA TELINHA

Se exemplares do chamado “horror elevado” se tornaram parte essencial da discussão sobre o terror nas telonas, sua presença na oferta do gênero para a TV é consideravelmente escassa. Como observa Church, “dadas as similaridades do pós-horror com filmes de arte, esse formato costuma estar associado à ambientação de maior atenção e concentração das salas de cinema”. Há exceções, como o autor mesmo pontua, principalmente em produções do cineasta Mike Flanagan junto à Netflix: A Maldição da Residência Hill, A Maldição da Mansão Bly e o lançamento deste ano, Missa da Meia-Noite. Ainda assim, ele crava, a telinha costuma subscrever a um modo “casual de experiência do espectador, que muitas vezes fez com que narrativas mais bem humoradas e episódicas, por vezes em séries antológicas, se tornassem tão populares”.

O formato destacado por Church é exatamente aquele que garantiu a Ryan Murphy 10 anos de sucesso com American Horror Story. Redistribuindo talentos recorrentes em diferentes tramas a cada temporada, a série de TV brinca com tropos e subgêneros do terror sem nunca abraçá-los exclusivamente. Assim, remete a hits similares do passado, como Contos da Cripta ou Galeria do Terror. Como destaca Clério Lopes Jr., editor do site Trilha do Medo: “O terror é um gênero que abraça tudo, aberto a discussões diversas, com inúmeras possibilidades e maneiras de ser trabalhado”. Priorizando formatos que permitem a navegação livre entre assuntos e abordagens, a TV potencializa essa característica-nata do gênero, ao mesmo tempo em que se blinda da sensação da quebra de expectativa que pode vir junto a grandes mudanças (observada tão claramente na reação do grande público aos filmes da A24). Como fez o remake de outro seriado clássico, Além da Imaginação, é possível para ela equilibrar na mesma produção episódios que empregam e que subvertem as regras-base do terror, atendendo à sua flexibilidade-nata.

Slasher, The Terror, Channel Zero, Lore, Room 104 são só algumas das séries mais recentes que exemplificam a tendência, mas nem só de antologias vive a TV. Em cinco anos, Bates Motel repensou a história do clássico Psicose com grandes atuações de Vera Farmiga e Freddie Highmore; há duas temporadas, M. Night Shyamalan leva sua visão artística particular à telinha com a perturbadora Servant; risos e sustos (mas predominantemente risos) se equilibram na versão televisiva da comédia O Que Fazemos nas Sombras, que expande desde 2019 o universo do filme de 2014 dirigido por Taika Waititi. Além disso, a telinha oferece mais uma opção para a ressurreição criativa de franquias clássicas em remakes ou sequências. Se a minissérie de 1994 de A Dança da Morte, inspirada no livro homônimo de Stephen King, tornou-se memória cativada apenas por fãs mais fervorosos, a Paramount e a CBS a resgataram sob roupagem moderna em The Stand; o slasher teen de 1997 é recriado para os anos 2020 com Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado, ainda que com resultados questionáveis; e Don Mancini retoma sua grande criação, Chucky, em seriado que evidencia como nunca o sempre presente comentário social sobre inclusão e diversidade da saga Brinquedo Assassino.

Filmes de terror lançados diretamente na TV também abundam graças ao streaming, e é impossível não notar o movimento de referência ao passado do gênero em produções deste ano como Rua do Medo (e sua Parte 1, Parte 2 e Parte 3), Céu Vermelho-Sangue e Um Clássico Filme de Terror. É com Hellraiser, entretanto, que o resgate ao passado das telonas na telinha dará seus passos mais ambiciosos nos próximos anos. Obra literária de Clive Barker, o título virou filme em 1987 pelas mãos do próprio, que acabou escanteado das sequências. Aos poucos, o argumento inicial da trama – um ensaio sobre a mistura extrema de hedonismo, paganismo e o oculto – deu lugar à mera pornografia de tortura. Mas, agora, finalmente Barker volta a se envolver diretamente com sua criação. Primeiro, como produtor de um reboot dos filmes para o serviço de streaming Hulu; depois, com uma série da HBO, que contará ainda com o mesmo David Gordon Green do novo Halloween na direção do piloto. Ao menos a primeira produção, que já anunciou Jamie Clayton (Sense8) como protagonista e David Bruckner (A Casa Sombria) na direção, já começa a empolgar fãs como Milici e Palmieri: “Virá com bons nomes por trás, como a condução de Bruckner e a promessa de respeito à obra literária”, analisa ele; “Ver a Jamie Clayton em trajes sádicos cometendo coisas horríveis e dores de outro mundo é a minha razão de viver noite e dia”, celebra ela.

ELES VÊM PARA TE PEGAR

“Os filmes que permaneceram como clássicos até hoje são aqueles que marcaram o público de alguma forma, com uma abordagem inovadora, algum argumento à frente do seu tempo”. A definição dada por Lopes Jr. é perfeita para ilustrar o sucesso que acompanha a franquia Pânico desde o filme original, de 1996. Como o jornalista desenvolve: “É uma franquia que nasceu reinventando o slasher, satirizando os clichês do subgênero, tornando temas e argumentos de cada época os assuntos principais em cada filme”. Em 14 de janeiro de 2022, essa obra de Wes Craven chegará ao seu quinto título sob grandes expectativas. Além do retorno dos veteranos Neve Campbell, David Arquette e Courteney Cox, Pânico 5 trará sangue novo para quem quer que vista a máscara de Ghostface fazer jorrar. Se juntam à saga Jenna Ortega (Dia do Sim), Dylan Minnette (13 Reasons Why), Melissa Barrera (Em Um Bairro em Nova York) e Jack Quaid (The Boys), sob direção da dupla responsável por Casamento Sangrento (2019), Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett. Fã confesso, Milici já projeta o que esperar: “Como o quarto filme satirizou os remakes, acredito que este fará o mesmo com os reboots, o que chega a ser uma interessante meta-linguagem”.

Esse retorno é efeito direto do sucesso de Halloween em 2018, mostrando que um slasher à moda antiga pode transformar US$10 milhões em mais de US$250 milhões. Só que, mesmo com todo o reconhecimento que mantém até hoje, Pânico é no máximo a segunda mais icônica criação de Craven – o que convida o interesse pelo futuro da principal, A Hora do Pesadelo. Em 1984, o saudoso cineasta trouxe ao mundo o demônio dos sonhos Freddy Krueger, criado quase que em resposta ao desgaste do arquétipo de assassino silencioso e implacável estabelecido por Michael Myers seis anos antes. O homem de rosto queimado, chapéu e luva com lâminas é um showman do horror, cheio de frases de efeito e ironias diabólicas. Imortalizado na performance caricata, ameaçadora e icônica de Robert Englund, a versão original do personagem fez vítimas em oito filmes e uma série de TV. Em 2010, uma tentativa de reboot com Jackie Earle Haley como o monstro fracassou em sua tentativa de cativar o público e a crítica, lançando a franquia em um limbo judicial de onde só saiu em 2019. Hoje, os direitos sobre ela estão com a família de Craven, que estuda novos projetos. Entre as opções, uma série na HBO e até um filme dirigido por Mike Flanagan despontam como as mais empolgantes, embora todas ainda residam apenas no reino dos sonhos.

Um dos oito filmes estrelados pelo Krueger de Englund foi o fan service em forma de longa-metragem Freddy vs. Jason (2003), galhofa de qualidade questionável que permitiu aos fãs menos criteriosos o prazer de ver dois ícones do horror saírem na mão bem depois de seus melhores anos. O personagem mascarado da franquia Sexta-Feira 13, de sobrenome Voorhees, é provavelmente o mais notório herdeiro do legado de Michael Myers nas telonas, abraçando um pouco mais o sobrenatural e o exagero e transportando os assassinatos silenciosos na cidade para acampamentos cheios de adolescentes com tesão. Chega a ser irônico, portanto, que ele se encontre no mesmo inferno de indefinições que seu rival de outrora: desde um remake lançado em 2009, não se ouve mais nas telonas o característico sussurrar que precede uma matança a facão do assassino serial. A questão toda é que, depois de três anos de brigas na Justiça, os direitos sobre o roteiro original da franquia foram passados às mãos do roteirista Victor Miller, que ainda há de anunciar qualquer intenção futura sobre a propriedade. Assim, ao menos por ora, mais filmes com Freddy e Jason acabam relegados apenas à especulação. Como diz Milici, “dentro desse universo de reciclagem do gênero, Jason e Freddy mereciam filmes melhores que os de 2009 e 2010, respectivamente”.

Na contramão da dúvida, uma certeza: vêm aí novos filmes da franquia O Exorcista, provavelmente uma das propriedades mais improváveis a serem exploradas após uma revitalização do cinema slasher. Primeiro terror indicado a melhor filme no Oscar, a obra, dirigida por William Friedkin em 1973 e baseada em livro de William Peter Blatty, gerou cinco sequências e uma série de TV. Agora, todo esse legado deve ser apagado em uma nova trilogia cinematográfica produzida pela Blumhouse, seguindo a mesma fórmula usada nos novos Halloween: continuar diretamente a trama do filme clássico, ignorando as sequências. Além de trazer Ellen Burstyn de volta à saga, o filme ainda terá o mesmo David Gordon Green que dirigiu o retorno de Michael Myers na direção, com Leslie Odom Jr. (Hamilton) representando a nova geração do elenco. É um projeto que convida o ceticismo, como expressa Milici: “A nova trilogia envolvendo O Exorcista desponta inicialmente como um produto puramente comercial e oportunista”, diz. Mas Jason Blum promete surpreender: “Nós tínhamos muitos céticos em relação a Halloween e David converteu eles e eu acho que ele irá convertê-los quanto a O Exorcista, também", afirmou em julho.

Church explica e dá nome à prática que Blum e Gordon Green voltarão a adotar, que deve também ser mais e mais empregada em outros resgates de grandes franquias, a exemplo do que fez A Lenda de Candyman. “Essa estratégia faz o trabalho de correção de um reboot, mas também traz as gerações agora mais velhas de personagens dos filmes originais, desenvolvendo suas narrativas décadas depois, para fãs clássicos”, detalha o autor. “Alguns estudiosos nomearam esse formato como ‘re-quel’, ao invés de um reboot ou uma sequência tradicionais”, adiciona. Para Palmieri, trata-se de um movimento natural de uma cultura que sempre abraçou as referências do passado: “O horror é um gênero dado à nostalgia como nenhum outro, então o refinamento estético de coisas que foram feitas no passado também são muito apreciados pelos novos públicos”. Considerando que alguns dos maiores filmes de horror de todos os tempos são, eles próprios, refilmagens de sucessos antigos, faz sentido enxergar a ruminação de temas ao longo de décadas como um processo orgânico. Como conclui Lopes Jr, ”quanto mais se toca em uma ferida, mais ela se abre. A constante evolução do cinema de gênero se dá graças a isso, graças aos nossos temores, terrores e horrores, criando novas histórias cada dia mais profundas e inteligentes”.

TÃO BONS QUANTO O ORIGINAL

Publicado 29 de Outubro de 2021
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