Festa do Oscar foi
sobre quase tudo,
menos cinema

Pedro Strazza | @pedrosazevedo Análise

Em uma noite dominada por situações inexplicáveis, o contraste de dois momentos muito particulares ajuda a explicar o que foi a cerimônia do Oscar 2022. O primeiro é singelo e, por incrível que pareça, diz respeito a um dos curtas vencedores da noite: enfim recebendo um Oscar por The Long Goodbye, o ator e músico Riz Ahmed deu o que talvez tenha sido um dos discursos mais bonitos da edição ao citar os “tempos divididos” que cercam o mundo e dedicar sua estatueta a todos que sentem não pertencer a lugar algum. “Você não está sozinho. Nós vamos te encontrar. É aí que está o futuro. Paz.” verbalizou o artista no palco, fazendo uma citação muito pontual à guerra na Ucrânia.

Já o segundo envolve um dos vários esquetes orquestrados pela produção, um tour pelo recém-inaugurado museu da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas com a apresentadora Wanda Sykes para divulgação do estabelecimento na premiação. O que era para ser uma iniciativa simpática de vender um dos principais ganha-pães da entidade depois do Oscar se converteu rapidamente numa situação de constrangimento, porém, com a comediante visitando os diversos espaços e mostras do edifício somente no intuito de fazer piada irônicas com os mesmos. “É que você nunca viu o Jason Momoa depois de um dia filmando Aquaman” brincou Sykes em determinado momento, ao avistar os adereços do monstro de A Forma da Água em exibição no museu.

Essas duas cenas podem ser antagônicas em premissa e efeitos, mas a importância dada a cada uma foi diferente do esperado. Por mais bonito que tenha parecido, o discurso de Ahmed passou discreto por ser uma das oito categorias do prêmio que este ano foram anunciadas antes da transmissão, editado depois para dentro dos trabalhos da premiação. O segmento do museu com Sykes, enquanto isso, ocupou longos sete minutos do Oscar, esgotando até a última gota sua proposta sem graça de comédia.

É como se uma verdadeira balança de prioridades corrompida tivesse norteado todas as decisões da produção da cerimônia este ano, preso a um olhar dos filmes muito mais próximo ao de Sykes na visita guiada do que gostaria de admitir. Vindo de um 2021 marcado pela queda histórica de audiência, o Oscar do último domingo pareceu ser sobre tudo menos o cinema ao qual foi criado para celebrar, desesperado demais para encontrar um público e apenas isso. Não seria algo muito diferente dos outros anos - que também miraram a viralização nas redes sociais a qualquer custo sem sucesso depois da selfie de Ellen DeGeneres - se isso não fosse feito em detrimento da própria premiação, escondida no ritmo troncho do que soou em boa parte do tempo como um programa de variedades sem grandes atrações: um ambiente controlado até o último fio de cabelo, mas sem charme e inspiração que justificasse tal empreendimento.

Cinema escanteado

Que o trabalho do produtor Will Packer à frente da premiação tenha dado certo por vias completamente erradas - e pertencentes aos rumos inesperados da transmissão - é a ironia fina que envolve essa edição. Cena da noite, o incidente da agressão de Chris Rock por Will Smith a poucos minutos do último receber o prêmio de Melhor Ator não demorou a roubar atenções da audiência e mesmo dos presentes, eclipsando uma sequência de esquetes ensaiados até o último minuto e que até então não faziam nada além de afundar o ritmo da premiação em uma sensação de entorpecimento. Quem poderia se importar com o In Memoriam animado e celebrativo ou o longo discurso de Kevin Costner para anunciar o prêmio de direção a Jane Campion quando os bastidores para assimilar e controlar os danos da agressão pelo ator queimavam o cabaré das redes sociais, afinal?

O problema do Oscar 2022 mora exatamente aí: quem conseguiu se importar com os filmes? Além de diminuir os discursos e esfriar a emoção envolvida nas entregas das estatuetas, a decisão da produção em remover da transmissão oito categorias - montagem, trilha sonora, design de produção, maquiagem, som, curta-metragem, animação em curta-metragem e documentário em curta-metragem - para “economizar tempo” também prejudicou o próprio andamento da cerimônia, deslocando demais a atenção do público para outras questões e destituindo a premiação das narrativas que fazem seu status. O pior, entretanto, é que a medida foi aplicada a troco de virtualmente nada: mesmo com sete categorias anunciadas na primeira hora, a cerimônia ainda estourou o tempo almejado e terminou com três horas e quarenta minutos de duração - um espaço de programação maior que a edição do ano passado, por exemplo.

Para piorar, a premiação em si foi das mais desestimulantes e previsíveis dos últimos anos, esgarçando qualquer potencial de surpresa para além da imagem chocante de Smith se descontrolando a nível de agressão. Única reviravolta maior da noite, o domínio de Duna nas categorias técnicas foi restringido pela transmissão de boa parte de suas vitórias no pré-show, e o Oscar no mais cumpriu com a trajetória previsível em todas as categorias principais: No Ritmo do Coração foi o campeão da noite, Ataque dos Cães terminou com um prêmio solitário de direção e todas as de atuação acabaram com os favoritos - Smith, Jessica Chastain, Ariana DeBose e Troy Kotsur.

Isso não quer dizer que bons momentos não aconteceram, porém, mas a esmagadora maioria derivou justamente dos prazeres do ao vivo que a edição buscou tanto suprimir. Enquanto é possível admirar o esforço hercúleo da transmissão para registrar o discurso de Smith no meio do caos da agressão (o corte da câmera para o semblante emocionado de Denzel Washington foi um achado), a cena mais emocionante da premiação foi a “passagem de bastão” de Yuh-jung Youn para Kotsur, uma situação cujos méritos vieram dos rituais tradicionais (a vencedora de atriz coadjuvante entrega o prêmio de ator coadjuvante no ano seguinte) e que teve num encontro muito particular e inesperado toda a força do momento - algo buscado a fórceps tantas vezes pela produção este ano.

O resultado de tudo isso foi uma cerimônia que existiu apenas na procura de si mesma, desconjuntada pela estrutura de segmentos que não evoluíam e narrativas que perderam todo o timing uma semana (e horas) antes, sendo beneficiada pontualmente por um ou outro discurso. Em certa medida, foi uma edição condizente com o status atual da Academia, em especial pelos triunfos que em tese foram “exaltados” este ano.

Isso porque o tal “Oscar da emoção” não esconde as várias tendências que norteiam a indústria para limites mais conservadores dentro de um cenário de rápida evolução. Que o streaming saia triunfante com o prêmio principal da noite é interessante, sobretudo por acontecer depois de um ano de crise nítida pela pandemia, dois da vitória de uma produção estrangeira na mesma categoria e três de um combate muito firme das plataformas na cerimônia. A escolha de No Ritmo do Coração no lugar de Ataque dos Cães, porém, também reforça um esforço dos setores mais tradicionais da Academia para manter preservada uma ordem das coisas, contemplando sobretudo a produção norte-americana em um momento de expansão dos alcances e diminuição do público - os EUA desde 2021 não são mais os reis da bilheteria global, perdendo o posto para a China.

Nesse ponto, vale lembrar de todos os recordes históricos que o filme de Sian Heder (foto) obteve ao ser anunciado como recipiente de Melhor Filme por Lady Gaga e Liza Minnelli. Além de vencer em todas as categorias a que foi indicado (feito pela última vez praticado por O Retorno do Rei) e sem indicações a direção e montagem, No Ritmo do Coração também é a primeira produção lançada no Festival de Sundance e o único remake depois de Os Infiltrados a triunfar na categoria. Sendo a aquisição mais cara da história do festival (a Apple gastou US$ 25 milhões pela distribuição), há um recado muito claro por parte de setores da Academia nessa escolha: sim, nós ainda fazemos cinema melhor que ninguém.

Em meio a esse clima de defesa e simbolismo ultrapassado - que pode ser resumido em clima de ironia política como o “Green Book da era Biden”, mas vale para os conformes das vitórias de Argo e Birdman - fascina também a questão da diversidade como meio a esses fins, ainda mais quando combinada à vitória de Campion em direção (única mulher indicada duas vezes na categoria), Ariana DeBose em atriz coadjuvante (a primeira artista latina abertamente queer a vencer uma estatueta) e até do próprio Will Smith em ator. Em 2018, Moonlight mostrou a força que a diversidade pode ter no principal prêmio de Hollywood; em 2022, a Academia mostra com No Ritmo do Coração que ela pode ser instrumentalizada para seus próprios fins.

5 bons momentos do Oscar 2022

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O discurso de agradecimento de Troy Kotsur

De longe o momento mais belo da cerimônia, a vitória de Kotsur por No Ritmo do Coração encantou não apenas por ser a segunda de um artista surdo nas categorias de atuação, mas pela emoção inesperada do encontro do ator com Yuh-jung Youn. Enquanto a vencedora do Oscar no ano passado por Minari deu tratamento muito singelo ao ator, anunciando seu nome com linguagem de sinais e se oferecendo para segurar o prêmio enquanto ele fazia o discurso, o agradecimento de Kotsur também foi forte ao lembrar da trajetória difícil e dedicar a vitória à comunidade surda. Até o tradutor oficial engasgou em lágrimas.

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As apresentações de “We Don’t Talk About Bruno” e “No Time To Die”

Em um Oscar limitado por apresentações muito simples no ao vivo (talvez ainda por conta da pandemia), a produção conseguiu tirar da cartola dois grandes momentos nas performances do maior hit de Encanto e a faixa título do último filme do 007. A primeira porque foi de longe a mais complexa e bela em termos de coreografia, com o elenco passeando pelo público do Dolby Theater junto de diversos bailarinos; a segunda, por aproveitar toda a dramaticidade da campeã da noite em Melhor Canção Original, em especial o talento dos compositores e intérpretes Billie Eilish e Finneas O’Connell.

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O discurso de agradecimento de Ariana DeBose

Primeira mulher não-branca e abertamente queer a ganhar um Oscar de atuação, DeBose não fugiu da importância histórica do momento e acabou abrindo com muito brilho os trabalhos da premiação. E como Kotsur, foi outra artista a reconhecer a trajetória difícil que a levou até ali: “Imaginem esta garotinha no assento de trás de um Ford Focus branco e olhem em seus olhos. Vocês verão uma mulher não-branca e queer, uma latina que encontrou sua força na vida por meio da arte. E acredito que é por isso que estamos aqui a celebrar”.

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A abertura (apesar de gravada)

Pode ter sido um tiro pela culatra gravar a apresentação ao invés de fazê-la ao vivo, mas é inegável que uma das poucas boas decisões da produção do Oscar este ano foi abrir os trabalhos com uma performance de Beyoncé. A estética de videoclipe da apresentação de “Be Alive” também favoreceu muito a artista, que gravou em Compton uma versão poética da canção de King Richard com todo o orçamento que lhe era devido.

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O discurso de Jenny Beavan

A categoria de Melhor Figurino foi um dos únicos prêmios técnicos que sobreviveram ao “corte” da transmissão pela produção, mas Jenny Beavan fez valer o momento. Visivelmente emocionada e campeã por Cruella, ela aproveitou a terceira estatueta da carreira ao dar detalhes das próprias vestimentas que criou para a cerimônia, um terno muito bem cortado e inspirado nos vestidos exuberantes da produção da Disney.

5 péssimos momentos do Oscar 2022

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Os esquetes de Amy Schumer, Regina Hall e Wanda Sykes

Pela primeira vez em quatro anos retomando a posição, a volta do cargo de mestre de cerimônia do Oscar foi medíocre para dizer o mínimo. Sem qualquer química no palco, o trio formado por Schumer, Hall e Sykes mal conseguiu vender as ideias por trás dos esquetes pensados pela produção e ainda entregou discursos inaugurais fracos, mesmo usando do formato tradicional da satirização. As piadas com o Globo de Ouro e a sublimação de categorias da transmissão foram especialmente sem graça, mas os piores momentos envolveram o uso de cosplays de filmes indicados, com direito a Schumer vestida de Homem-Aranha em cabos de suspensão.

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As tentativas bruscas de cortes nos discursos de agradecimento

Numa cerimônia que fez o máximo para reduzir a importância dos prêmios, até que tem sentido a produção ser pouco discreta na hora de tentar “abreviar” os discursos dos vencedores. Os piores momentos envolveram as categorias de filme internacional e efeitos visuais: enquanto Ryusuke Hamaguchi, diretor de Drive My Car, tomou um susto com a música subindo de repente para encerrar seu agradecimento, a equipe de Duna foi intimidada pelo recurso a parar de falar para a audiência do Dolby Theater.

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As “homenagens” a Poderoso Chefão e 007

Além dos discursos breves, chamou bastante a atenção na cerimônia o péssimo uso do tempo para celebrar os cinquenta anos de O Poderoso Chefão e os sessenta da franquia 007, meras vinhetas que poderiam ter saído dos extras de algum DVD perdido. Mas o pior foi a atenção dada aos trios de apresentadores, com a produção escolhendo por algum motivo os esportistas Tony Hawk, Kelly Slater e Shaun White para falar dos filmes do espião britânico e Al Pacino e Robert De Niro passando mudos na cerimônia para permitir que Francis Ford Coppola falasse brevemente de sua trilogia no palco.

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As votações populares

Todo mundo avisou no anúncio, mas é óbvio que deu muito errado a tentativa da Academia de “jogar para a torcida” e criar duas votações populares para decidir o momento cinematográfico mais empolgante e o filme favorito dos fãs no ano. Ainda que o sentimento do meme “Hello fellow kids” seja grande, a vergonha alheia maior aconteceu nas escolhas, com ambas premiando filmes de Zack Snyder: graças aos fiéis e entusiasmados fãs do diretor, a corrida do Flash em Liga da Justiça de Zack Snyder e Army of the Dead: Invasão em Las Vegas foram os grandes campeões de audiência na premiação - e como ambos não estavam nem indicados, a torta de climão foi forte.

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O “reconhecimento” da guerra na Ucrânia

Para cada discurso e manifestação discreta dos convidados na premiação (muitos usaram broches e fitas azuis em apoio simbólico aos ucranianos), a tentativa da produção em reconhecer a gravidade da invasão da Ucrânia pela Rússia ficou entre a boa intenção e a má execução. Com a tentativa fracassada de colocar o presidente Volodymyr Zelensky para discursar na cerimônia (algo que veio para bem, aliás), o Oscar aproveitou o espaço imediatamente após a apresentação da canção “Somehow You Do” para exibir cartelas pedindo ao público que apoiasse os ucranianos com doações de recursos. Foi o momento de canto em coral de “Imagine” da noite.

Publicado 28 de Março de 2022
Capa Kaique Vieira | @kaicovieira
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Coordenação Jorge Corrêa | @_jorgecorrea