O mergulho de
Bruno Gagliasso
para Marighella

Galã de novela e pai dedicado, o ator fez sacrifícios para interpretar vilão reacionário

Pedro Henrique Ribeiro | @OiPhRibeiro Repórtagem

Batendo na porta dos 40 anos, o ator Bruno Gagliasso acumula inúmeros papéis no currículo, e uma fama de galã de novela que o segue mesmo quando encarna vilões. Bruno curte essa fama. Mas não se contenta em ser mais um rostinho bonito da teledramaturgia brasileira. Inspirado em Fábio Assunção, sua referência geracional de galã bom ator, Bruno está longe das novelas desde 2019, quando fez Gabriel em O Sétimo Guardião. Satisfeito com seu trabalho até aqui, ele comemora o lançamento de Marighella, seu mais recente lançamento.

No filme, o ator interpreta o delegado Lúcio, personagem inspirado em Sérgio Fernando Paranhos Fleury, um agente do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops) durante a Ditadura Militar no Brasil. “Ele é a personificação do mal. Meu personagem é racista, fascista e representa tudo o que eu abomino. Então, foi muito difícil [interpretá-lo], conta Bruno, que sofreu com crises de ansiedade por causa das cenas violentas do vilão, que ele acredita que será visto como herói por muitos.

Bruno é um daqueles atores que levam o personagem para casa, então precisou se afastar de tudo durante as filmagens para que a essência do personagem não respingasse nas pessoas próximas a ele. “Eu fiquei três meses isolado em São Paulo, longe da minha família. Como todo mundo sabe, meus filhos são negros, então foi muito difícil”.

Divulgação

O peso da arte

O ator, que trabalha sem contrato fixo com emissoras ou estúdios, diz em entrevista ao Omelete que hoje pode priorizar os papéis em que vai atuar. Para aceitar os trabalhos, ele leva em conta se o impacto que a história terá na sociedade e na vida das pessoas. “É muito bom você poder, através da sua arte, ajudar de alguma maneira as pessoas. E contar essa história é isso. É não deixar a história de um cara como Marighella se apagar”.

O novo filme é inspirado no livro biográfico Marighella - O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, escrito pelo jornalista Mário Magalhães. Estreia de Wagner Moura como diretor, o longa-metragem recria a história de Carlos Marighella, um guerrilheiro comunista que lutou contra o regime militar brasileiro. Militante desde seus 18 anos, Marighella lutou pela democracia até ser assassinado por agentes do Dops, em 1969. O guerrilheiro recebeu anistia póstuma, em 2011, pelo governo brasileiro, o que significa que os atos dele durante a ditadura foram considerados impuníveis.

Sobre os paralelos entre o contexto da trama representado no filme e o presente do Brasil, Bruno diz que mais atual, impossível. “Engraçado, porque havia tanto medo de esse filme estrear. As pessoas têm uma dimensão do que é esse atual governo, então isso facilita a compreensão [da trama] e só faz o filme ganhar mais força. Acho que não teve hora melhor [para a estreia]”.

Incomodados que se mudem

Marighella deveria ter chegado aos cinemas brasileiros em 2019, logo após sua exibição no Festival de Berlim. Entretanto, o filme teve seu lançamento adiado, segundo a Agência Nacional de Cinema (Ancine), por ter perdido o prazo de entrega de documentação.

A papelada seria referente ao investimento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) reservado para a etapa de lançamento da produção; um apoio administrado pela Ancine pelo qual Marighella havia sido contemplado antes da entrada de Jair Bolsonaro (sem partido) na presidência. De acordo com a agência, para receber cerca de R$1 milhão ao qual tinha direito, a produtora do filme deveria informar a data de lançamento com ao menos 90 dias de antecedência, o que a O2 Filmes diz ter sido impossibilitada de fazer porque o contrato com a FSA ainda não estava finalizado. A alternativa foi pedir uma excepcionalidade, mas o pedido foi negado por conta de pendências relativas a outros projetos, segundo afirmou Ancine.

Wagner Moura, no entretanto, afirmou em entrevista ao Omelete que houve má fé por parte do governo federal. “Nós marcamos uma data [de lançamento], e aí a Ancine inviabilizou a estreia do filme, mesmo. Eu não tenho nenhum problema em dizer que o que aconteceu foi censura. Justamente numa época em que Bolsonaro falava em filtragem”, afirmou o diretor.

Já a poucas semanas de seu lançamento, a produção encarou outra pedra no sapato. O filme sofreu ataques no IMDB, um famoso site de dados cinematográficos e televisivos. Os trolls tentaram diminuir a nota do longa com avaliações negativas antes mesmo de terem assistido ao filme. A plataforma percebeu o erro e corrigiu a nota do filme. Bruno espera que o filme continue incomodando. "Chega à beirar a imbecilidade. [Esse ataque] é muito pequeno perto da grandiosidade do que é a vida e a história do nosso país. Porque depois de tanto tempo as pessoas não enxergam o que está acontecendo, é imbecilidade mesmo”.

Divulgação

A arte na guerra

A cultura brasileira vem travando uma grande batalha para se manter durante a pandemia do novo coronavírus, que por muito tempo suspendeu eventos e fechou salas de teatro e cinema. Além do caos viral, os profissionais da arte também tiveram que lidar com os problemas endêmicos do Brasil, como a falta de incentivo e manutenção do patrimônio cultural do país. Essa situação entristece Bruno. “A gente está tomando porrada o tempo inteiro. O que esse atual ‘desgoverno’ quer é desmantelar e desmontar a cultura. Mas eles não vão conseguir. É só olhar nos livros de história. Não vão conseguir apagar o cinema nem a música. Apagar a arte? Nunca. Eles não conseguiram apagar Marighella e o que as pessoas vão ver no cinema é um Marighella vivo”.

Se os desafios internos já não fossem o bastante, quem vive da arte ainda precisa lidar com um movimento que tomou força na pandemia - o negacionismo antivacina. Há casos de artistas que simplesmente recusam se vacinar. O ator não poupou palavras ao falar desses colegas e daqueles que apoiam o atual governo. “Eu acho uma vergonha. A arte por si só já é um ator político. Estar do outro lado, em cima do muro, ou dizer que não fala sobre política nos dias atuais é estar do lado do opressor. Do lado de quem ataca. É muito claro isso”, disse Bruno. “Eu tenho nojo e desprezo, porque se você não entender que fazer arte e ser da cultura é fazer política e apoia o atual governo, que é declaradamente contra a cultura, você está no lugar errado, você não é artista”, continuou.

Cultura pop e a representatividade

Bruno é casado com a também atriz Giovanna Ewbank, com quem tem três filhos: Chissomo (Títi), Bless e Zyan. Sempre que tem oportunidade, o pai coruja fala das crianças, orgulhoso. O casal já está iniciando os filhos no cinema nacional, mas sempre tomando cuidado com o conteúdo: “Marighella elas vão demorar um pouquinho para assistir”, diz Bruno, dando risada.

Mas não é apenas o cinema nacional que está moldando o gosto das crianças. Produções americanas com representatividade também estão conquistando os mais velhos, em especial, Bless. “Meu filho adora cinema e está super empolgado que terá um Superman negro [da minissérie de Michael B. Jordan]. Ele também é super fã do Miles Morales. Ele adora filmes de super-heróis. E a madrinha dele, a Cintia Rosa, faz Detetives do Prédio Azul, e ele também gosta bastante”.

Entretanto, se de um lado as crianças estão tendo contato com boa diversidade, do outro, há um mundo hostil e odioso de pessoas que cultivam o ódio e o preconceito. A pequena Títi já foi vítima de ataques racistas mais de uma vez, e Bruno conta o que tem feito para proteger ela e o irmão. “A melhor forma de proteger é educar e não fingir que nada está acontecendo. É isso o que eu, minha família e meus amigos fazemos. Então, enquanto eles são jovens a gente está ao lado fazendo o que todo pai e mãe faz ou deveria fazer. A melhor forma de protegê-los é essa: educando e ensinando, abrindo caminhos e possibilidades. Eu acho que não existe proteção maior do que a informação”.

Entre uma gravação e outra, pai e mãe se rendem às vontades dos pequenos, que reinam absolutos nas férias da família Ewbank Gagliasso. Principalmente agora, que eles se mudaram para Salvador, onde ele diz ter muitos amigos. “Eu morei um ano lá quando era moleque e a cidade está cada vez mais me puxando e me proporcionado felicidade”, conta Bruno. “E é um lugar que meus filhos se veem muito e eu quero cada vez mais criar raízes e manter laços”.

Fora da Globo e pelo globo

Em 2019, o galã de novelas deixou a Rede Globo para se aventurar em outros projetos, sem se prender a um único contato. Dois depois, Bruno faz um balanço da vida nesse período: “Eu saí por uma questão de liberdade artística. Eu resolvi não ter nem um tipo de contrato fixo, não só com a Globo, mas com ninguém. Eu me senti no direito de poder escolher as histórias que eu quero contar, dos personagens que eu quero estudar. Eu tô feliz”.

Além do já lançado Marighella, o ator também está perto de incluir mais dois títulos ao seu currículo. Atualmente, ele está filmando a série Santo, da Netflix. A trama criminal conta a história do traficante de drogas mais procurado do mundo, cujo rosto nunca foi revelado. Dois policiais extremamente diferentes, Cardona (Gagliasso) e Millán (Raúl Arévalo) caçam o criminoso enquanto tentam sobreviver. “A gente rodou seis meses e meio em Madri e estamos rodando agora em Salvador. A produção deve acabar no final de novembro”, conta o astro, que não precisou ficar tanto tempo longe da família para viver esse policial. “Levei minha família toda para Portugal, somos cidadãos portugueses, e fiquei entre Madri e Portugal”.

Aproveitando a ponte aérea das gravações de Santo, Bruno participou de uma minissérie em outro serviço de streaming. Ele estará em Operacíon Marea Negra, do Prime Video. A trama de quatro episódios é baseada na história real de um narco-submarino latino interceptado na Europa com três toneladas de cocaína. “Eu faço um empresário do tráfico”, brinca Bruno, que interpreta um brasileiro que construiu o submarino. "Ele é um traficante, mas se intitula como um homem de negócios. É uma série muito bacana, uma coprodução com Portugal.

Sobre o convite, o ator conta que estava na Espanha quando foi abordado para o projeto. “É um diretor muito bacana que eu já conhecia o trabalho, que é o Daniel [Calparsoro], e deve estrear no início do próximo ano”.

A temporada de gravações europeias pode não ter acabado por aí. O ator gostou da experiência de filmar fora do país e não descarta repetir a dose. “Foi muito legal. Eu quero contar boas histórias, não me interessa se onde. Eu não tenho essa pretensão de escolher onde fazer. Eu não quero ir para Hollywood, eu tenho vontade de contar boas histórias e ter bons personagens. Isso me fascina e é isso que me faz crescer como ser humano e como ator”. Mas ainda assim, a paixão dele pelo cinema nacional não está nada abalada. “A gente tem que dar mais valor às nossas histórias porque o cinema brasileiro é bom demais. A gente precisa redescobrir algumas histórias”, afirma ele, antes de citar a vida de Maria Bonita como exemplo.

Com Marighella, Santo, Marea Negra e uma linda família, Bruno está mais que pronto para os 40 anos, que completa em abril. Muito realizado, ele ainda tem o sonho de trabalhar com o cineasta Pedro Almodóvar, mas sem pressa. “Eu gosto do que a maturidade me trouxe. Eu sinto que hoje eu sou um cara muito mais sereno e tranquilo. Ariano ainda”, brinca. "Mas já vivi algumas coisas, então já não tenho mais tanta pressa como eu tinha há 5 ou 10 anos”.

Publicado 13 de Novembro de 2021
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Coordenação Jorge Corrêa | @_jorgecorrea