BATMAN:
DAS PÁGINAS
ÀS TELAS

Transformação do Cavaleiro das Trevas
em ícone cinematográfico vem desde
os anos 1940

Nicolaos Garófalo | @nikogarofalo Repórter

Os primeiros bat-sinais

Criado em 1939 por Bob Kane e Bill Finger, o Batman não demorou muito para pular dos quadrinhos para os cinemas. Em 1943, antes mesmo de a DC Comics se consolidar ou do personagem se tornar o grande ícone dos quadrinhos que conhecemos hoje, o Cruzado Encapuzado já estrelava seu primeiro serial, The Batman, protagonizado por Lewis Wilson. Embora trouxesse o Homem-Morcego em toda a sua glória, poucos eram os aspectos dos gibis que realmente marcaram presença nesta primeira adaptação. “Durante a década de 1940 o Batman adquiriu duas adaptações para o cinema no formato de cinessérie, a primeira em 1943 e a segunda em 1949. As duas tinham aspectos que retratavam muito mais um contexto político, social e econômico do que verdadeiramente fiel aos quadrinhos até aquele momento”, afirma Laluña Machado, pesquisadora especializada em quadrinhos. “As cinesséries tinham objetivos específicos, muito diferentes do que consumimos hoje no cinema. Eram obras Classe B e com orçamentos medíocres, além de vários furos de roteiro, mas cumpria exatamente o que era proposto... Entreter e ‘informar’”. Principal autoridade no Brasil quando o assunto é Batman, a historiadora lembra também que, embora o Morcegão fizesse parte da máquina de propaganda que dominava a cultura norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial, alguns aspectos dos primeiros live-action influenciaram as histórias do herói em sua mídia original, incluindo a batcaverna e o retrato de Alfred, fiel mordomo da família Wayne.

Pouco mais de 20 anos depois de sua estreia nos cinemas, o Maior Detetive do Mundo ganhava uma nova adaptação, desta vez nas telinhas. Essa versão icônica, vivida por Adam West, abraçava a galhofa colorida que dominava a Era de Prata dos Quadrinhos, divergindo bastante do esforço de guerra apresentado nos anos 1940. “É um Batman que tinha muita sintonia com o seu tempo, porque eram os anos da chamada Swinging London e da Jovem Guarda no Brasil, do movimento hippie, e o lado lúdico dos quadrinhos de super-herói se presta muito facilmente a essa adaptação cartunesca”, comenta Marcelo Hessel, jornalista e crítico de cinema, que vê a encarnação de 1966 como pioneira em aspectos que seriam implementados décadas depois em outras adaptações de quadrinhos. “Muito antes de Frank Miller e Robert Rodriguez escolherem a fotografia de alto contraste em Sin City para emular a mídia dos quadrinhos, a série de TV do Batman já fazia isso com as intervenções visuais das onomatopeias. Ninguém que ridiculariza o seriado do Batman diz a mesma coisa para Sin City, então talvez o problema delas não seja com o cartunesco, mas sim com a inocência de uma adaptação ‘não-adulta’”.

Embora alguns classifiquem o retrato sessentista do Cavaleiro de Gotham como ridículo, existe uma adoração inegável pelo que West e seus colegas contribuíram para o legado do personagem, com muitos fãs tendo essa versão como a adaptação absoluta do herói. Para Laluña, o astro “encarnou um personagem que lhe foi solicitado exatamente daquele jeito, talvez por isso ele é visto por muitos fãs como o Melhor Batman, porque é claro o divertimento em fazer aquilo. Há muita dedicação em proporcionar algo marcante”. West eventualmente se tornou inseparável do personagem que ajudou a transformar em fenômeno mundial, associação que exibia com orgulho. “Em uma de suas entrevistas, Adam West comentou: ‘eu nunca precisei dizer que eu era o Batman (uma referência às cenas em que o personagem diz ‘I’m Batman’), eu sabia que era e as pessoas também sabiam’. Eu mesma tinha certeza de que ele era o Batman”.

Aliadas aos gibis, que se tornavam cada vez mais populares entre jovens e crianças do mundo todo, essas primeiras empreitadas do Cavaleiro das Trevas para fora das páginas solidificaram o personagem como um dos grandes pilares da cultura pop, posto que ele ocupa até hoje. “O Batman é o sonho do homem branco padrão que era o centro da sociedade na época em que ele surgiu e que foi por muito tempo. É um cara forte, rico, que bate em todo mundo, inteligente e que sempre vence. Sua popularidade se auto-explica já por aí”, opina Felipe Vinha, um dos maiores especialistas em histórias em quadrinhos no Brasil. “É o ideal masculino elevado ao máximo, em uma época onde a sociedade ainda não tinha uma busca maior por igualdade de gênero ou pautas mais progressistas”.

1989 e o retorno do Batman às telonas

Após o fim da série estrelada por West, o Morcegão levaria mais de duas décadas para ganhar uma nova adaptação em live-action. Em 1989, Tim Burton levou sua versão gótica e sensual do Batman aos cinemas, marcando o primeiro blockbuster real protagonizado pelo herói. Mesmo mudando aspectos hoje considerados básicos do herói, como seu tamanho intimidador e sua regra de nunca matar um inimigo, a primeira aparição de Michael Keaton como Bruce Wayne segue entre as encarnações mais amadas do personagem. “Considerando a revolução que teve nos quadrinhos do Batman na década de 1980, os filmes do Burton se encaixam em muitos ambientes do que vinha sendo apresentado nos comics”, argumenta Laluña. “Mas temos que entender que é o Batman do Burton, é como ele quis fazer e a Warner deu carta branca para isso. São materiais que mesmo não apresentando grandes referências das histórias em quadrinhos, ainda se encaixa na ‘Ideia Batman’”.

Mesmo com algumas divergências gritantes, a essência dos quadrinhos esteve sempre muito presente na Gotham estilizada de Burton. Marcos no cinema de herói, Batman e Batman: O Retorno, de 1992, seguem, mesmo depois de três décadas, entre os favoritos de público e crítica. “São filmes adorados porque são filmes ótimos e o valor inflacionado que damos para fidelidade hoje em dia não tinha o mesmo peso na época”, diz Hessel, lembrando também que a forma como o mundo do Batman é mostrado no “Burtonverso” nunca esteve “tão distante assim do que se publicava no final dos anos 1980”. “Inclusive a sensibilidade de Tim Burton para o gótico tem muito em comum com a de Neil Gaiman, que nesses anos começava a despontar como um nome de grife nas HQs da linha Vertigo”, completa.

A gente tem várias vertentes do Batman”, comenta Load Comics, criador de conteúdo e leitor assíduo de quadrinhos. “É a mesma coisa nos quadrinhos: conforme cada roteirista vai escrever, aproveita mais o que ele gosta no personagem. Então acho que acabou chegando para uma galera de uma forma diferente”. Falando sobre as quatro décadas que separaram o primeiro Batman de Burton da última vez que o personagem agraciou as telonas, ele lembra que o cineasta assumiu uma grande responsabilidade ao adaptar um personagem tão amado pelos leitores. “Ele trouxe o personagem de volta aos holofotes e chamou Bat sinal pra ele. Então ele conseguiu trazer visibilidade para o Batman”.

Nos anos que se seguiram, Batman e O Retorno passaram a influenciar o retrato do Cavaleiro das Trevas em diferentes mídias. O visual soturno, a personalidade de Bruce/Batman e até mesmo a trilha sonora composta por Danny Elfman se tornaram base para a forma como Bruce Timm e Paul Dini construíram sua versão do herói em Batman: A Série Animada, que lançou o até hoje aclamado DCAU (“universo animado DC”, em inglês). Fora de seu selo original, os longas ainda afetaram a forma como outras propriedades intelectuais dos gibis eram levadas para os cinemas. “O filme de 1989 é um resgate do clima pulp e do noir que estavam com o Batman já em 1939”, diz Hessel. “Hoje, a gente considera que ele reacendeu o interesse pelos filmes de super-herói, mas se excluirmos os projetos fracassados (como o filme do Quarteto Fantástico de 1994 nunca lançado oficialmente) os filmes que se seguiram ao primeiro Batman são todos policiais ou pulp: Dick Tracy e Darkman em 1990 e O Sombra em 94, além do Rocketeer de 1991”.

Para Vinha, é difícil imaginar que o DCEU e o MCU teriam tanta força se não fosse pelo sucesso da versão do Morcegão vivida por Keaton. “Batman do Burton e Superman do Richard Donner foram o alicerce de tudo que vemos hoje [nas franquias de super-herói]. Nos dois filmes foram realizadas coisas que jamais imaginaríamos ver no cinema, a partir dali começou o sonho de ver tantos outros heróis nas telonas”, afirmou o jornalista.

A influência apontada por Vinha não se limitou à forma como os longas de heróis passaram a ser produzidos. O marketing em torno da produção e seu lançamento, por exemplo, pautam até hoje ações publicitárias dos principais blockbusters das últimas décadas. A venda de produtos licenciados antes mesmo da chegada de Batman aos cinemas ajudou não só a Warner a lucrar ainda mais com o filme, como ainda alimentou as expectativas para a estreia. Para Laluña “a indústria entendeu que algumas ferramentas poderiam funcionar em paralelo com os colecionáveis. Para tanto, também foi nesse momento que a legitimação simbólica do Morcego dentro da elipse amarela criada em 1964 e aprimorada em 1966. [Essa] técnica eficiente que tornou esse ícone um dos mais reconhecíveis do mundo. Você pode não ter lido ou assistido do Batman, mas se você vir em qualquer lugar esse símbolo, você sabe que é o Batman. Os filmes do Burton possibilitaram uma espécie de imaginário coletivo e isso é consumido de forma orgânica, logo, vende muito e em vários formatos”.

Superando barreiras geracionais, o sucesso de Batman segue refletindo na expectativa criada em fãs do herói a cada nova versão que chega aos cinemas. A paixão criada por essa visão de Burton é tanta, que a Warner decidiu trazer de volta o Cavaleiro das Trevas de Keaton para assumir o posto de Batman “oficial” do DCEU, substituindo Ben Affleck. Para alguns, esse retorno do astro à batcaverna é incentivado por puro saudosismo, enquanto outros o veem como uma promessa do estúdio de um retorno ao domínio cinematográfico da DC exercido entre os anos 1970 e 1990. Apesar da volta de um ator do passado da franquia, Laluña acredita que Keaton pode dar um novo fôlego ao universo cinematográfico da editora. “Confesso que acho muito interessante esse tipo de abordagem porque oferece uma nova dinâmica narrativa, e a DC necessita disso nos longas”.

Os diferentes rostos de Bruce Wayne

Apesar de icônico, Tim Burton teve vida curta como comandante do Batman. Os elementos grotescos e atmosfera aterrorizante de O Retorno podem até ter sido bem recebidos pelos fãs, mas o medo de prejudicar a venda de brinquedos levou a Warner a buscar por um novo diretor para a franquia. “Ele saiu por causa do McDonald’s”, se revolta Load, referenciando a polêmica associação entre o filme erótico e sangrento de 1992 ao combo infantil McLanche Feliz. “A gente não viu um terceiro [Batman do Burton] porque o McDonald’s não queria vender brinquedo. E aí [o estúdio] tirou ele”. O substituto escolhido pelos produtores foi Joel Schumacher, responsável por Os Garotos Perdidos e Um Dia de Fúria. A troca de diretores também levou Michael Keaton a deixar o papel principal, assumido então por Val Kilmer.

Embora tenha mantido muito da sensualidade trazida por Burton, Schumacher deu à Gotham de Batman Eternamente uma atmosfera muito mais colorida e cheia de neon, além de usar um humor pastelão nos diálogos, algo que não foi tão frequente nos filmes de seu antecessor. “Foi um choque bem grande”, lembra Vinha, que vê a confusão sobre o longa de 1995 ser uma sequência ou um reboot como um dos principais fatores para má recepção da crítica. O choque, no entanto, não se traduziu na bilheteria, com Eternamente faturando US$336 milhões ao redor do mundo, um crescimento de quase US$100 milhões em relação aos US$266 milhões de O Retorno.

Do ponto de vista da progressão, são filmes que fazem sentido, porque o Schumacher continua o viés personalista do Tim Burton, com filmes que carregam as tintas na fetichização e na psicologização do personagem (lembrando que Nicole Kidman faz uma psicóloga e Bruce Wayne considera deixar de ser o Batman por ela em Eternamente), mas que não interditam a franquia para o público infantil como O Retorno tinha feito”, analisa Hessel. As coisas desandaram de vez em 1997, quando um quarto filme, agora estrelado por George Clooney, chegou aos cinemas. "Visualmente, Batman & Robin tinha muito a ver com coisas populares na época, como Spice Girls e Austin Powers, que tentavam resgatar um certo espírito lúdico sessentista. A questão é que o apelo sexual desse espírito livre (que está muito presente em vários outros filmes de Schumacher, inclusive em Os Garotos Perdidos) foi entendido pelos fãs do Batman sombrio apenas como uma coisa cafona”. Ao contrário de Eternamente, Batman & Robin ficou atrás de O Retorno nas bilheterias. Como consequência, a franquia foi encerrada e oito anos se passaram até que a Warner e a DC decidissem levar o herói de volta às telonas.

Em 2005, Christopher Nolan apresentou ao público sua própria visão para o Homem-Morcego. Com Batman Begins, o personagem ganhou tons de realismo, que se refletiram nas escolhas por apetrechos táticos e militares, além de um abandono de aspectos fantasiosos característicos dos quadrinhos. “Para mim, a Era Nolan funcionou como tinha que funcionar no cinema e não funcionaria nas revistas do modo que foi apresentado. Acho meio determinante colocar como vantagens e desvantagens de se utilizar esse tipo de formato, afinal, é o Batman do Nolan e ele projetou daquele jeito”, comenta Laluña.

Favoritos da crítica e do público, os longas estrelados por Christian Bale conquistaram legiões de fãs, mas o grande afastamento dos quadrinhos alterou de forma perceptível a opinião pública sobre quem era o Batman “de verdade”. “É como se os filmes de Nolan tivessem vergonha de se basear em HQs, porque neles tudo precisa ser justificado pela familiaridade com o nosso mundo real”, opina Hessel, que lembra também que Begins surgiu em meio a um contexto mundial bem diferente dos longas anteriores do Morcego. “Nolan se inscreveu muito bem numa tendência do cinemão americano que busca pela sobriedade, cicatrizado pelo imaginário cinza de fim do mundo [após os atentados à Nova York em 11 de setembro de 2001], e, se hoje reclamamos que os filmes não têm cor, isso sem dúvida é um tributo que deve ser pago ao sucesso do cinema de Nolan, que se revestiu de ‘seriedade’”.

O sucesso da “fórmula realista” de Nolan foi sacramentado em 2008, quando Batman: O Cavaleiro das Trevas assumiu, para vários fãs, o posto de melhor filme do Cruzado Encapuzado, muito pela atuação de Heath Ledger, que inclusive venceu, postumamente, o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por seu trabalho como Coringa. “Nolan acostumou o público a assistir aos filmes de heróis, não somente se entreter com eles”, comenta Laluña. “[Ele] nos apresentou primeiro um Bruce Wayne e depois um Homem-Morcego, isso ainda não tinha sido feito no cinema. Há toda uma linha narrativa que nos direciona para as motivações do personagem. Tem história e personagens que são tratados com o mínimo de profundidade, não é só tiro, porrada, bomba e close na bunda do BatClooney”.

Com o fim da bilionária Trilogia Nolan em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, de 2012, a expansão de um universo cinematográfico promovida pela rival Marvel, a DC e a Warner decidiram criar uma nova franquia interligada protagonizada por seus heróis. O pontapé inicial do DCEU foi O Homem de Aço, comandado por Zack Snyder, que acabou se tornando responsável por mais uma versão do Cavaleiro de Gotham, vivida por Ben Affleck e apresentada em Batman vs Superman - A Origem da Justiça, de 2016. Apoiado em clássicos como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e A Piada Mortal de Alan Moore e Brian Bolland, o diretor de 300 trouxe para as telas um Batman agressivo, temperamental e violento, descrente na humanidade após anos e anos servindo como vigilante. Apesar de não ter sido a primeira versão do herói a matar adversários nas telonas (até então, apenas George Clooney havia saído de seu filme sem vítimas), o Batffleck acabou ficando marcado pelo alto número de corpos que espalhou por Gotham.

O Batman quase sempre foi brutal, em várias mídias diferentes inclusive, mas quantas pessoas têm acesso a esse tipo de material?! O cinema abraça um público maior, ainda mais na atualidade”, comentou Laluña sobre a má fama que paira sobre o Morcegão de Affleck há seis anos. “O Batman do Burton matou, mas é impossível compararmos a quantidade de pessoas que teve acesso a isso em relação ao que é no apresentado hoje. O cinema saiu das salas e foi para a internet, foi para os celulares, tablets, notebook, smart tv; sem falar nas redes sociais que estreitam ainda mais essa relação”.

Querido por muitos fãs, Snyder sofreu com tragédias pessoais durante a produção de sua Liga da Justiça e, após seu polêmico desligamento do projeto, Affleck, que iria escrever, dirigir e protagonizar um novo filme solo do Batman, deixou o projeto e anunciou que se aposentaria do DCEU após The Flash, que tem estreia prevista para 2023. Em entrevistas recentes, o ator contou que as dificuldades que teve em sua relação com a Warner durante seu período vestindo a capa e o capuz prejudicaram sua saúde mental e que não pretende retornar aos blockbusters de herói tão cedo após pendurar seu cinto de utilidades.

Amores, rivais e vilãs: as protagonistas femininas do Batman

Desde que Kim Basinger deu vida a Vicky Vale em 1989, o Batman costumeiramente dividiu o protagonismo de seus filmes com personagens femininas - mas com resultados bem variados. Para cada Selina Kyle de Michelle Pfeiffer, os fãs recebiam uma Rachel Dawes de Katie Holmes ou uma Hera Venenosa de Uma Thurman. Fossem “colocadas na geladeira” ou apenas pessimamente desenvolvidas, a maioria dessas personagens dificilmente caía nas graças dos fãs. Por mais que não seja possível apagar a influência do male gaze que domina Hollywood, o olhar fetichista que limitava essas personagens a femme fatales ou donzelas em perigo é inegavelmente uma herança dos quadrinhos. “Nos quadrinhos as coisas têm evoluído de forma lenta, mas eu consigo enxergar mais elementos progressistas do que no cinema”, diz Laluña. “Porém, a indústria cinematográfica sofre mais críticas e de forma mais rápida do que os quadrinhos. Isso é natural porque as telonas têm um público consumidor maior e ele tem apresentado algumas exigências que antes não eram atendidas”, observa a pesquisadora, que lembra também a forma como a Arlequina de Margot Robbie foi retratada em Esquadrão Suicida (2016), Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (2020) e O Esquadrão Suicida (2021). “[São] três representações distintas entre si em um curto espaço de tempo e isso é resultado de debates de quem está consumindo isso. O público mudou, a indústria tem que mudar também”.

“[O retrato sexualizado] é reflexo do pouco número de mulheres produzindo ou produzindo sem o controle de homens por trás. Sou bem curioso para ver um filme do Batman dirigido por uma mulher, inclusive”, comenta Vinha, que lembra também que tanto nos cinemas quanto nos quadrinhos, a forma de escrever heroínas e vilãs tem passado por mudanças graduais. Nos últimos anos, produções como Mulher-Maravilha (2017), Capitã Marvel (2019) e Aves de Rapina têm escapado das amarras do olhar masculino dominante da indústria, com personagens desenvolvidas para além do fetichismo público. O caminho, no entanto, ainda é longo e requer uma maior inclusão de mulheres não só nos setores criativos, mas também administrativos de grandes produções.

Falando especificamente do universo do Batman, essa evolução ainda engatinha. Para Laluña, houve uma mudança “quase nula” na forma como as mulheres eram trazidas para Gotham desde os anos 1940, embora tenha dado um passo importante com Batman, de 2022, e sua Selina Kyle. “A última versão vivida por Zoë Kravitz me surpreendeu de forma muito positiva. É uma Mulher-Gato sexy sem ser sexualizada, bem diferente da Selina embalada à vácuo da Michelle Pfeiffer do Burton. Matt Reeves conseguiu entregar uma personagem negra que não é objeto sexual, isso quer muita coisa. Principalmente em uma das maiores franquias do mundo”. Segundo a pesquisadora, a construção dessa Selina é “fantástica” e, apesar de alguns beijos fora de hora, “a história dela caminha sozinha independente das ações do Batman. Ela tem a linha narrativa dela muito bem trabalhada e isso estreita a relação com o público”.

Entre Pfeiffer e Kravitz, outras duas versões da Gata foram levadas às telonas: uma vivida por Halle Berry no infame filme solo de 2004 da Mulher-Gato, e outra interpretada por Anne Hathaway em O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Mesmo não conquistando a mesma conexão com o público que os retratos de O Retorno e Batman-22, essas participações deixaram claro o fascínio do público pela anti-heroína, que frequentemente adota um papel de antítese para Bruce Wayne. Segundo Hessel, Selina é, assim como outros vilões do Homem-Morcego, um espelho do personagem, mais especificamente um que reflete o fetichismo em torno do próprio herói. “Por meio do uniforme dela, obviamente fetichizado no couro ou no vinil, o Batman "percebe" o que implica o gesto de fantasiar-se à noite do ponto de vista dessas pulsões. É óbvio que ela teria um chicote e que Frank Miller faria dela uma dominatrix em Batman: Ano Um, porque com a Mulher-Gato essas questões de interpretação, em relação ao perfil psicológico do Batman, se tornam literais”, explica.

Além da força da personagem, que já é aprofundada nos quadrinhos desde que estreou há 82 anos, a Mulher-Gato também é um importante farol de representatividade em filmes de super-herói, com retratos que vão muito além de um simples interesse amoroso. “Ela faz as vezes do Batman na hora da ‘idealização pessoal’ para as mulheres. Muitas meninas se enxergam nela e agora ainda enxergam também como uma personagem que não se curva ao Batman, mas que curva o Batman”, opina Vinha.

Ela é uma pessoa prejudicada pelo sistema”, desenvolve Load. “[Ela é] o nosso Robin Hood. Então ela é muito bem o contraponto do Batman. Ao mesmo tempo que ele teve tudo e se fantasiou de morcego para bater nos outros, a Mulher-Gato (...) teve que se virar sozinha e começar a roubar dos outros”, observou o apresentador, lembrando que a personagem tende a mirar em outros criminosos e elites corruptas quando escolhe quem e o que roubar. “Ela tem uma construção muito interessante que dá para levar para várias vertentes e tocar em vários assuntos”.

E se a Mulher-Gato tem dividido o protagonismo com o Batman quando aparece nas telonas, Gotham tem recebido mais e mais mulheres na sua galeria de combatentes do crime. Além de Arlequina, Aves de Rapina apresentou Caçadora (Mary Elizabeth Winstead), Reneé Montoya (Rosa Perez), Canário Negro (Jurnee Smollett) e Órfã (Ella Jay Basco), enquanto Batgirl trará Leslie Grace como a jovem e genial aliada do Homem-Morcego. Ao contrário do que se viu nos últimos 20 anos, o universo do Cavaleiro das Trevas vai ganhando mais vozes e cores e tornando-se mais plural do que nunca. “O mais legal é ver que tem personagens femininas para todos os gostos e espectros da humanidade né. Tem heroína, tem vilã, tem policial, tem agente do governo, tem mafiosa”, celebra Vinha.

Já tinha passado da hora [de trazer essa pluralidade]. Principalmente em explorar as diferenças e similaridades entre elas ocupando espaços que eram majoritariamente dominados por personagens masculinos. E o universo ficcional do Batman é tão vasto, tão cheio de elementos que proporcionam inúmeras possibilidades”, complementa Laluña.

O som épico de Gotham

Hans Zimmer, Danny Elfman, Michael Giacchino, Shirley Walker e até Prince. Ao longo dos anos, poucas foram as adaptações do Batman que não contaram com uma trilha sonora épica e memorável, que ajudou na construção da atmosfera que produtores e cineastas idealizaram para seus filmes. Para Vinha, “todo filme de herói inesquecível precisa ter uma trilha sonora que grude na cabeça. É fundamental. Homem-Aranha, Vingadores, Superman, Batman… Todos têm isso em comum. É a música que faz você cantarolar sem perceber e lembrar da figura imortalizada daquele herói”.

Assim como a famosa música-tema dos anos 1960 - quem nunca cantou “na na na na na, BATMAN”? - preparava a atmosfera para as ações de Adam West e Burt Ward, as composições de Elfman e seus sucessores aos poucos se tornaram indissociáveis de suas respectivas versões do Homem-Morcego, com trilhas que refletem não só a psique do herói, mas também a construção de Gotham City como uma personagem por si só. “Há inúmeras preocupações em como [a cidade do Batman] deve ser representada e isso não é visto em outras produções do gênero. Ninguém se importa em como Central City [base de operações do Flash] irá se parecer, mas com Gotham isso é uma demanda importante”, opina Laluña, lembrando que não só o Cavaleiro das Trevas, mas todas as personalidades que o cercam são moldados pela metrópole escura e perigosa, sejam heróis ou vilões. “As trilhas dizem muito para que nós tenhamos a sensação de caminhar pelas ruas da ilha. É explorar os sentidos para uma imersão quase que completa e sem uma trilha muito bem pensada, que case com direção de fotografia fica praticamente impossível que isso aconteça”.

Por ser ditado pelo fantástico, o filme de super-herói permite voos mais altos e personalistas na orquestração, da mesma forma que permitiu aos cineastas imprimir seus estilos e suas visões de mundo ao Batman”, diz Hessel. “Gotham se presta a muitas formas de estilização, sendo o gótico a mais conhecida e popular, e a virtuose na música é uma delas”.

Se a trilha composta por Giacchino tem aparecido entre as músicas mais tocadas em plataformas de streaming, as composições de Elfman seguem eternizadas no imaginário dos fãs. Assim como é impossível separar Star Wars e Superman de John Williams, o Cavaleiro das Trevas muito provavelmente ficará eternamente ligado à criação gótica e sensual - e às vezes natalina - de Elfman. “Os primeiros minutos do Batman de 1989 são emblemáticos por conta da composição dele”, conclui Laluña.

2022: o ano do Battinson

Recebido com certa desconfiança por alguns internautas, Robert Pattinson calou a boca de muitos críticos com seu trabalho como protagonista no novo Batman, comandado por Matt Reeves. O longa, que estreou em março de 2022, teve ótima repercussão e, com menos de um mês em cartaz, já compete com O Cavaleiro das Trevas em rankings de fãs do mundo todo. Mais focado na faceta de detetive do Batman que seus antecessores, o filme longa foi recebido ao mesmo tempo como um sopro de ar fresco equanto como um retorno à ótima forma que parecia ter sido deixada em 2008. Além disso, sua estrutura autocontida vai na contramão da tendência da indústria de focar em grandes filmes-evento. “É um filme de herói para quem está cansado de filmes de heróis”, definiu Vinha. “Ele tem uma proposta diferente em um mercado que já está quase saturado e precisa de reinvenções urgentemente”.

Alguns aspectos do mito [do Batman] são muito relacionáveis”, comentou Reeves em uma coletiva que contou com a presença do Omelete. “Em um gênero que é conhecido por mostrar superpoderes, ele não tem poder especial nenhum. O que ele tem é essa vontade especial de perseverar e lutar contra algo que é muito pessoal para ele”. Para o cineasta, o Cavaleiro das Trevas, apesar de estrelar histórias extremamente sombrias e, às vezes, tristes, é cercado de uma positividade que vem desde a época de Bob Kane e Bill Finger. “Tem algo em Gotham ser esse lugar imperfeito e cheio de traições que ecoa o mundo real, mas também é algo maravilhoso nessa fantasia de ver um cara enfrentando essas forças”.

Apesar de trazer um sentimento de novidade, Batman-22 não deixa de tocar em pontos já pré-estabelecidos nas eras Nolan e Snyder. Assim como seus antecessores, Reeves introduziu seu Cruzado Encapuzado em uma atmosfera mais realista e, em vários momentos, questionadora. “Essa versão dá continuidade à visão revisionista e quase niilista de Zack Snyder, mas consegue dosar isso com um olhar sobre o mito dos super-heróis que ambiciona recuperar seu lugar como farol moral e autoridade benevolente num mundo desesperançado”, compara Hessel. “É também um filme que, embora jogue com códigos e temas do cinema ‘realista’, nunca deixa de pintar uma Gotham City estilizada como a dos quadrinhos, e nesse sentido é um filme muito mais bem-sucedido do que os de Christopher Nolan”.

Um dos pontos mais elogiados de Batman-22 foi a recuperação do conceito de apresentar o herói como um detetive. Presente em adaptações televisivas e nos videogames, o Melhor Detetive do Mundo nunca realmente comprovou seu título nas telonas, contando muito mais com tecnologia, força bruta e, vez ou outra, sorte para derrotar seus oponentes. O novo filme, no entanto, conquista “por ser um Batman que usa o cérebro verdadeiramente e não fica refém de acessórios”, opina Laluña. “Isso é muito o Batman do Bill Finger. Além disso, era um ponto do personagem que ainda não tinha sido explorado devidamente no cinema, o que eu realmente não entendia. Afinal, não é por acaso que o Batman surgiu numa revista chamada Detective Comics”.

Enquanto os fãs aguardam pela oficialização de uma sequência para Batman-22, teorias sobre os caminhos que Matt Reeves e o Battinson devem seguir no futuro já têm aparecido aos montes nas redes sociais. O próprio diretor vem, indiretamente, alimentando-as, já tendo dito em entrevistas que gostaria de usar vilões como Senhor Frio e Silêncio numa possível (e provável) continuação. Além da oficialização, há um pequeno empecilho para a chegada desses personagens: o tom realista seguido pelo primeiro longa. “Acredito que não seja a intenção do diretor [abraçar elementos fantasiosos dos gibis]. Ainda mais que ele entregou um Batman com acessórios mais condizentes com a realidade, um Batmóvel no mesmo nível e uniforme que acompanha isso”, argumenta Laluña. “Entendo que ele pode querer resgatar a identificação que as pessoas tinham com o personagem há anos. Explorar os traumas de outras maneiras e de como o próprio Bruce Wayne lida com isso, principalmente as situações que se referem ao seu histórico familiar”.

A saída, no entanto, pode estar na aplicação de uma pseudo-ciência, justificando personagens e conceitos irreais, como o Poço de Lázaro e os poderes da Hera Venenosa, com explicações que, apesar de irreais, sejam verossímeis o bastante para se encaixar no mundo realista do Battinson. Exemplos na cultura pop não faltam. Citando o anime de sucesso One Piece, Load lembra que um de seus personagens, Usopp, usa sementes (fictícias, óbvio) para criar os mais diversos tipos de armamentos, algo que pode ser aplicado caso Reeves queira trazer Pamela Isley à sua franquia. “É como diria o Chorão [na canção “Só os Loucos Sabem”]: ‘o impossível é só questão de opinião’. Se vai dar certo ou não, a gente não sabe. Mas é possível e eu acho legal”.

Se a trama detetivesca e realista de Reeves - que assina o roteiro ao lado de Peter Craig - prendeu os fãs dos quadrinhos, a atuação de Pattinson calou a boca de muitos “críticos das redes sociais”, ainda muito apegados à época em que o ator protagonizou a Saga Crepúsculo. Em um trabalho tão sólido quanto o que apresentou em longas como Cosmópolis e Bom Comportamento, o britânico mostrou que tem a força necessária para carregar um blockbuster, mesmo com poucas linhas de diálogo. “Acompanho o trabalho de Rob há anos”, contou Reeves, que escreveu Batman-22 pensando em Pattinson antes mesmo de tê-lo contratado. “[Em Bom Comportamento] ele tem essa força, esse ímpeto desesperado que o tornou uma força da natureza. Vi isso e amei. Mas outra coisa que senti é que ele tem essa vulnerabilidade que estava muito presente naquele momento”. O diretor admitiu que ficou “obcecado” em ver o ator como seu Bruce Wayne, algo que foi oficializado em 2019.

Todo mundo estava desacreditado no Robert Pattinson [em 2019]”, lembra Load. “Todo mundo estava falando da ‘entropia da imersão’, achando que ele não ia ser um bom Batman porque tinha feito Crepúsculo”. O apresentador ainda argumenta que os comentários apressados (e, agora, comprovadamente equivocados) provaram que “julgar uma pessoa pelo que ela já fez e não prestar atenção no atual momento dela é ser ignorante”.

Com mais de US$ 677 milhões arrecadados nas bilheterias ao redor do mundo, Batman já é, com menos de um mês em cartaz, um sucesso absoluto. Além do bom desempenho econômico, o longa ainda rendeu um ressurgimento da canção “Something In The Way”, lançada pelo Nirvana em 1991, e que embala o título e a trilha sonora do filme. A música, composta por Kurt Cobain para o lendário disco Nevermind, fez a banda de Seattle chegar pela primeira vez em 20 anos ao Top 10 da Billboard, além aumentar em 2070% as buscas pela canção no Google.

O domínio que Batman-22 tem apresentado nas discussões da cultura pop comprovam a força do personagem e reforçam seu apelo junto ao público. Nascido em meio à desconfiança após as polêmicas envolvendo Snyder, Affleck e Warner, o Battinson já entrou de forma cativante para a história do Cavaleiro das Trevas. “É isso, vamos pintar o olho de preto e ouvir Nirvana”, brincou Load sobre o sucesso do longa.

O Batman do Futuro

Se uma sequência de Batman-22 ainda não está oficializada, o universo à sua volta já tem uma expansão garantida. Ainda em março, a HBO Max confirmou uma minissérie focada no Pinguim de Colin Farrell e sua ascensão como chefão do crime em Gotham. Paralelamente, Reeves e companhia desenvolvem uma série sobre o infame Asilo Arkham e seus pacientes-prisioneiros. Fora da franquia, a Batgirl de Leslie Grace deve chegar em 2023 no streaming, solidificando ainda mais a marca do Morcego no século XXI. A julgar pelo bom desempenho e recepção positiva praticamente universal, não é de se imaginar que a figura do Cavaleiro das Trevas fique, como alguns temem, saturada. Hessel, por exemplo, já aprendeu a não apostar contra o personagem. “Eu julgava o Batman saturado depois do Snyderverso, da mesma forma que não via um recomeço possível antes dos filmes de Nolan. O Batman é bom e se renova na medida em que arrumam para ele boas narrativas”.

Lembrando que o Batman fora dos gibis se estende para muito além do live-action - com animações, audiodramas, livros e webtoons cada vez mais numerosos -, Laluña entende que sua marca “flutua no imaginário popular” já há alguns anos. “Eu mesmao não sabia que precisava de outro filme do moço vestido de morcego até assistir Batman. É personagem com inúmeras possibilidades e muitas delas ainda não foram exploradas por outras mídias”.

A presença constante do Cavaleiro das Trevas nas telonas desde o final dos anos 1980 faz dele um dos nomes mais certeiros da indústria cinematográfica. Seja com blockbusters revolucionários ou participações em filmes-evento, o herói e sua mitologia têm se tornado mais ricos a cada ano, com Gotham recebendo personagens, visões e histórias diferentes. E, se ainda não podemos nos deleitar com sequências e derivados do mais novo lançamento, temos a certeza de que sempre contaremos com (no mínimo) um Batman para nos entreter - seja assistindo ao seu novo filme nos cinemas ou brindando seu longo legado para o entretenimento.

Publicado 01 de Abril de 2022
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