É 2023, e o Oscar segue uma relíquia ultrapassada

Nem Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo conseguiu fazer a Academia parecer vital

Caio Coletti | @caiocoletti Análise

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é - goste dele ou não - o filme mais espetacularmente contemporâneo a aparecer na lista do Oscar em muito, muito tempo. Fragmentado como o discurso cultural na era do Twitter, versado ao extremo na linguagem do meme que valoriza o absurdo até acima do “coerente” (o que quer que isso signifique exatamente, em pleno 2023), ele ter saído como o grande vencedor da noite do Oscar 2023, com sete estatuetas, é sinal de uma Academia mais conectada com o mundo ao seu redor? Bom, não é bem assim…

Tudo em Todo o Lugar é uma anomalia em termos de como foi lançado, lá no início do ano, abraçado fabulosamente pelo público e vendido brilhantemente pelo estúdio durante uma looooonga campanha de Oscar. Ao mesmo tempo, é também mais um ponto previsível no cabo de guerra que definiu os prêmios da Academia nas últimas décadas - para cada Green Book, um Moonlight; para cada Argo, um Parasita; para cada O Discurso do Rei, um Tudo em Todo o Lugar.

Em suma: o Oscar quer agradar a todo mundo, se mostrar corrente sem perder a aura de tradicional, cortejar a audiência do público jovem interessado em arte-como-ativismo (e compreensivelmente exausto de décadas de trabalhos brilhantes, feitos por indivíduos culturalmente diversos, sendo ignorados por instituições como a Academia), mas sem alienar uma audiência mais velha e conservadora. E fazer isso só é possível se você não se posicionar de forma realmente significativa em nenhum sentido.

Nunca isso ficou mais óbvio do que quando, na véspera do Oscar 2023, a imprensa especializada americana “vazou” - estrategicamente, apostamos - que a Academia desejava se afastar completamente de questões políticas nesta cerimônia. "Não estamos interessados em distrações ou em debates partidários. Estamos interessados em Tom Cruise", apontou uma das fontes da organização, talvez sem saber que o astro de Top Gun: Maverick não tinha intenção nenhuma de comparecer à festa.

"Queremos abraçar a diversidade e o talento dos indicados deste ano, mas queremos também voltar para os anos em que o escapismo era o que importava”, completou a tal fonte, encarnando melhor do que eu jamais poderia o dilema cínico que encarnou o Oscar deste ano, como tem encarnado há algum tempo. Vide o apresentador Jimmy Kimmel fazendo piada sobre a falta de mulheres na categoria de melhor direção; ou citando (sem sombra de punchline) a ausência de Till - A Busca por Justiça e A Mulher Rei, filmes com protagonistas negras, entre os indicados.

O longo monólogo inicial de Kimmel ainda incluiu outra puxada de orelha na Academia, neste caso pela inação dos organizadores durante a grande crise do Oscar 2022, quando Will Smith deu um tapa em Chris Rock no palco do Dolby Theatre. "Se alguém subir aqui e me bater, vai receber um Oscar de melhor ator e fazer um discurso de 19 minutos", disse o comediante. "A Academia tem um time de crise este ano e, se alguma violência acontecer nessa cerimônia, apenas façam o mesmo que fizeram no ano passado: nada".

Trata-se de uma instância clássica do que os americanos chamam de “lampshade hanging” - quando alguém chama a atenção para um problema sem intenção nenhuma de tomar atitudes para resolvê-lo. A ideia é apaziguar os ânimos dos críticos sem passar pelo processo complicado e potencialmente polêmico (fazer algo ficar melhor nunca significa que vai ficar melhor para todo mundo, afinal) de mudar aquilo que foi o alvo das críticas. A Academia não quer se modernizar - em espírito de certa forma similar ao dos astros e estrelas indicados, ela só quer que todo mundo goste dela.

Não é preciso ser parte da Academia para saber que, por mais compreensível que seja o impulso, alcançar essa unanimidade não é só impossível: tentar chegar lá também faz com que você seja muito, muito chato.

Phil McCarten / ©A.M.P.A.S.

Os momentos que (quase) fizeram tudo valer a pena

TODAS AS APARIÇÕES DE NAATU NAATU

Já no monólogo inicial de Jimmy Kimmel, o apresentador brincou que discursos longos demais seriam interrompidos não por música, como é tradição, mas por um grupo de dançarinos ao passo de “Naatu Naatu”, música do filme indiano RRR. E olha… quem dera não tivesse sido só piada.

Todas as vezes que a canção fez uma aparição na festa do Oscar 2023, os ânimos da cerimônia protocolar e entediante se levantaram um pouquinho. A performance ao vivo dos cantores Rahul Sipligunj e Kaala Bhairavaprevious foi talvez a única que realmente divertiu os espectadores - e, quando “Naatu Naatu” venceu o Oscar de melhor canção original, o compositor M. M. Keeravani deu um discurso-show ao tom de The Carpenters, sua banda favorita da infância. Adoramos ver (e ouvir)!

Blaine Ohigashi / ©A.M.P.A.S.

KE HUY QUAN, NÓS TE AMAMOS!

Em uma das primeiras categorias da noite, o fofíssimo e talentosíssimo Ke Huy Quan levou o Oscar de melhor ator coadjuvante por Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, cimentando a trajetória mais vitoriosa da temporada de premiações - mas afinal, como alguém resistiria à narrativa de comeback de um ator que passou décadas sem trabalhar pela falta de oportunidades para indivíduos asiáticos em Hollywood? Nem os votantes do Oscar nem a gente, poxa!

Com um discurso empolgado e tocante como foram os seus no SAG, no Globo de Ouro, no Independent Spirit Awards e em dezenas de outras cerimônias nos últimos meses, Quan saiu do Dolby Theatre com a aura de mais novo super astro de Hollywood. Sorte a nossa, né?

Richard Harbaugh / ©A.M.P.A.S.

SARAH! POLLEY! MEUS! AMORES!

Obrigado, Academia, por não se sentir mortalmente ofendida pelas palavras ‘mulheres’ e ‘falando’ colocadas uma depois da outra”, começou Sarah Polley ao receber o seu Oscar de melhor roteiro adaptado por Entre Mulheres - no título original, Women Talking, ou “mulheres falando”.

A alfinetada é mais do que bem-vinda em uma noite que perdeu (de novo) a oportunidade de premiar a primeira mulher na categoria de melhor fotografia (Mandy Walker, por Elvis, perdeu para o cinematógrafo de Nada de Novo no Front, um dos 4 Oscar técnicos do filme de guerra da Netflix). Isso sem contar que reconhecer Polley, que deveria ter sido indicada a melhor direção e vem fazendo filmes incríveis há quase 20 anos, é uma das melhores coisas que o Oscar fez este ano.

Blaine Ohigashi / ©A.M.P.A.S.

GAGA TIROU A MAQUIAGEM PRA GENTE

Lady Gaga chegou ao Oscar no estilo glamouroso de sempre, mas subiu ao palco para apresentar a sua “Hold My Hand”, de Top Gun: Maverick, de camiseta preta simples e cara limpa - isso depois de muito mistério sobre se a performance sequer aconteceria. No fim das contas, ela trouxe a música em forma acústica, ao piano, versão bem mais sóbria do que a de estúdio, que estivemos ouvindo em repeat nos últimos meses.

Após entregar os vocais impressionantes de sempre, ela dedicou sua apresentação ao diretor Tony Scott, responsável pelo Top Gun original, que morreu em 2012. Não erra, né?

Blaine Ohigashi / ©A.M.P.A.S.

UM ANIVERSÁRIO INESQUECÍVEL

Os amigos do ator James Martin, que estrela o curta-metragem An Irish Goodbye, vão ter que se esforçar muito nas próximas festas de aniversário dele… e, mesmo assim, eles dificilmente vão superar a de 2023, quando Martin subiu ao palco do Dolby Theatre receber o Oscar de melhor curta e ouviu um coro de “Parabéns Para Você” entoado pelas maiores estrelas de Hollywood.

É nesses momentos que a gente acredita na magia do cinema…

Blaine Ohigashi / ©A.M.P.A.S.

VENCEDORA DO OSCAR MICHELLE YEOH

A verdade é que o Oscar só realmente significa alguma coisa quando traz reconhecimento e oportunidade de trabalho para quem merece, e não receberia de outro jeito. Por décadas a fio, Michelle Yeoh tem sido uma das figuras mais inspiradoras da cultura pop, e uma das atrizes mais dedicadas e capazes do cinema global.

A Evelyn de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é o papel de uma vida, e nenhuma premiação do Oscar 2023 foi mais ricamente merecida do que a dela - isso mesmo se não fosse a primeira mulher asiática, e segunda mulher não-branca, a vencer a categoria. Mas, acima de tudo, aquela expressãozinha “vencedora do Oscar” nunca mais vai sair da frente do nome de Yeoh, o que vai permitir que vejamos muitas e muitas outras performances inspiradoras dessa mulher.

O ouro é dela, mas quem ganha somos nós.

Publicado 14 de Março de 2023
Edição de texto Beatriz Amendola | @bia_amendola
Arte de Capa Paola Murbach | @paprycca
Fotografias A.M.P.A.S./Divulgação
Coordenação Jorge Corrêa | @jorgecorrea_