FIM DE UMA ERA

Depois de numerosos adiamentos em razão da pandemia do coronavírus, Daniel Craig finalmente se despede de James Bond em Sem Tempo Para Morrer. No entanto, ao renunciar o posto do espião mais famoso do cinema, o ator faz mais do que trazer indefinições para o futuro da franquia: deixa, ainda, um legado e tanto a ser superado por seu sucessor (ou sucessora)

Por Mariana Canhisares

“Controverso”, “rústico” e “insosso”. “Sem charme, nem carisma”. “Brando, James Brando”. Depois de quatro filmes e com o derradeiro Sem Tempo Para Morrer chegando agora aos cinemas, revisitar as primeiras reações da imprensa britânica ao anúncio de Daniel Craig como o sexto 007 da história pode ser uma experiência curiosa, mais próxima de um vislumbre de uma realidade paralela do que propriamente de uma viagem no tempo. Hoje, o ator inglês é posto lado a lado -- quando não é considerado até superior -- a Sean Connery, a figura que eternizou o agente do MI6 na memória dos fãs de cinema. Como, então, conceber que, há 16 anos, um telejornal da BBC chegou a perguntar aos seus telespectadores: “estamos prontos para o primeiro Bond loiro?”

Dos adjetivos e expressões citados acima, talvez o único que tenha sobrevivido ao teste do tempo tenha sido a palavra “rústico”. É inegável: há algo de grosseiro no Bond do Daniel Craig. Como a própria Vesper Lynd (Eva Green) nota no seu primeiro encontro com o agente, em Cassino Royale, sua elegância vem acompanhada de um desdém, uma hostilidade. Bem, sem mencionar o fato de que, na primeira vez que o vimos em ação, o recém-promovido espião estava destruindo portas, pias e privadas de um banheiro qualquer com a cara do seu adversário.

No entanto, ele trouxe mais para James Bond do que cenas de ação mais realistas e doloridas: a era Craig propôs uma reformulação profunda do personagem. Diferentemente dos seus antecessores, não se tratava “apenas” de uma mudança de estilo, isto é, fazê-lo mais ou menos engraçado, ou criar um novo gesto característico à sua personalidade. Era também uma questão de se adequar a um contexto geopolítico que ninguém foi capaz de prever ou, ao menos, impedir. Em outras palavras, o desafio não era mergulhar nas desconfianças da Guerra Fria, nem justificar a relevância de um espião após a Queda do Muro de Berlim. Mas inseri-lo num cenário em que as inteligências governamentais são falhas e eventos como o 11 de setembro acontecem.

Neste mesmo mundo, alguns dos traços mais elementares do Bond também não faziam mais sentido. Fumar? Nem os vilões mantêm esse hábito. Ir de mulher em mulher, como se fossem acessórios descartáveis? Chega disso. Além de ser uma representação datada, o comportamento sexual das pessoas mudou depois da AIDS. Logo, não dava mais mesmo para fingir que não havia outros perigos, além das balas, no estilo de vida que o agente levava

Diante do adeus de Daniel Craig em 007: Sem Tempo Para Morrer, é hora de olhar para trás e entender como e por que o famoso personagem criado por Ian Fleming não será mais o mesmo. Mas, para isso, é preciso voltar para o começo, mais especificamente para o dia 14 de outubro de 2005, quando o mundo se decepcionou com a escalação do pouco conhecido (e, aparentemente, muito loiro) ator britânico.

CONTRA CRAIG

Daniel Craig chegou para a coletiva de imprensa que o anunciaria como o sucessor de Pierce Brosnan pelo Tâmisa. Passando por baixo da London Bridge, um dos mais famosos cartões postais da capital britânica, ele esbanjava elegância com seu terno preto, gravata vermelha e óculos escuros, e parecia aproveitar o passeio de lancha. Ele transmitia tanta tranquilidade que era como se aquela sexta-feira fosse um dia qualquer, e não a promessa de que sua vida e carreira mudariam drasticamente.

É claro que, como ele mesmo admitiu aos jornalistas momentos depois, não tinha nada de ordinário naquilo. Para além da companhia da Marinha Real Britânica, os constantes flashes e poses, havia sim nervosismo envolvido. Craig estava prestes a se juntar a um hall de seletos atores que fizeram história com a franquia e moldaram a cultura da espionagem ao longo de quase cinco décadas em Hollywood. Então não tinha como encarar aquele passo na sua vida profissional (e pessoal) de modo leviano.

Não bastasse a responsabilidade de ter nas mãos um papel como James Bond, a cena em si não tinha nada de espontânea. Ela fora construída cuidadosamente para evocar o 007 que os produtores Barbara Broccoli e Michael G. Wilson haviam identificado nele durante o extenso processo de procura pelo seu novo leading man. Os símbolos britânicos, a valentia e a elegância do personagem de Fleming estavam todos lá. É curioso, portanto, que foi justamente neste momento que a imprensa mundial começou a dar pistas da sua dúvida quanto à escolha. Quem diria que vestir um colete salva-vidas, respeitando as orientações da Marinha, seria suficiente para que o recém-apresentado Bond fosse taxado por alguns repórteres de “covarde”?

A desconfiança, porém, era anterior ao anúncio. Como bem noticiavam os tabloides, Craig estava na disputa com nomes como Clive Owen, Colin Farrell e Hugh Jackman, profissionais mais estabelecidos e que já haviam emplacado alguns sucessos. Craig, em contrapartida, era visto como um bom coadjuvante, com performances elogiadas, mas tímidas, como na série Our Friends in the North e no filme Nem Tudo é o Que Parece, de Matthew Vaughn. “Eu tinha uma carreira que, para mim, era bem-sucedida. Mais do que imaginei que teria como ator. Mas não tinha uma persona bacana. Eu fazia filmes artísticos, foi difícil convencer”, lembrou o ator no documentário Being James Bond, da Apple TV.

Até mesmo o estúdio por trás da franquia tinha suas dúvidas sobre a escolha, e insistiu que a dupla de produtores se reunisse com outros atores, mas naquele momento Broccoli e Wilson só tinham olhos para Craig. Afinal, até chegar nele foram consideradas mais de 200 pessoas para o papel, entre profissionais do Reino Unido e da Comunidade das Nações (também conhecida como Commonwealth), num processo que durou mais de um ano -- e Broccoli já acompanhava a carreira do ator atentamente. No doc, ela contou que estava convencida de que ele seria capaz de assumir o número 007 desde que o assistiu em Elizabeth, em 1998, como John Ballard.

Mas, acredite se quiser, ela precisou convencer até mesmo Craig. No caso, não porque ele tivesse dúvidas das suas habilidades como ator, mas porque não tinha interesse em reproduzir o que Sean Connery, Roger Moore e companhia fizeram anos antes. O que ele não sabia era que os roteiristas Neal Purvis e Robert Wade já tinham essa intenção de “rebootar” a franquia muito clara quando começaram a escrever Cassino Royale -- antes até de saberem quem seria o novo Bond. Então, em vez de se deparar com uma resposta negativa, Craig ouviu “é exatamente isso o que a gente quer”.

De lá para cá, o ator realmente desempenhou um papel ativo na tomada de decisão sobre os rumos da franquia -- o envolvimento de Phoebe Waller-Bridge em Sem Tempo Para Morrer, por exemplo, partiu dele. Como o próprio Craig admite hoje, suas opiniões já levaram a discussões no set, mas, no geral, seus instintos sobre quem é e o que é certo para Bond são mencionados por roteiristas, diretores e produtores da franquia em tom elogioso.

É claro que duvidar de Craig como Bond é impensável em 2021. Basta pegar as bilheterias dos quatro filmes anteriores para notar que, nas suas mãos, o 007 se manteve relevante. Operação Skyfall fez US$ 1,10 bilhão em 2012, ficando atrás apenas de Os Vingadores (US$ 1,5 bilhão) naquele ano. Até o mais criticado deles, Quantum of Solace, figurou na sétima posição do Top 10 mundial em 2008, somando US$ 589,5 milhões. Mas, na época em que assumiu o posto, ele era praticamente um “zé ninguém” -- pior: um zé ninguém que estava vindo depois do Pierce Brosnan.

Envolvida na escalação dos últimos três Bonds, a diretora de elenco Debbie McWilliams lembra ter sentido pena de Craig tamanha a repercussão negativa que seu anúncio ganhou na imprensa. "Durante todo o filme, saíam [notícias] sobre como ele não conseguia andar, falar, correr, dirigir direito. Tanta coisa e que era completamente falsa", afirmou à Entertainment Weekly. "De um jeito curioso acho que isso o incentivou a dar seu máximo e provar que todos estavam errados".

Com as atenções todas voltadas para o novo Bond, fotógrafos fizeram de tudo para pegar um flagra qualquer das gravações do primeiro filme. O “tudo” aqui não é tão hiperbólico quanto parece, porque houve quem tenha literalmente se enterrado na praia em Nassau, nas Bahamas, um dia antes das filmagens para tentar um furo. O resultado dessa loucura foi o ponto de virada para a aceitação de Daniel Craig: a famosa foto dele saindo do mar.

A imagem comprovava o charme do ator e, não à toa, foi capaz de despertar a curiosidade até dos fãs mais céticos. Mas, mais importante ainda, hoje pode-se perceber que ela era um bom indício da atualização que o personagem estava prestes a passar. Isso porque, pela primeira vez, era o 007 -- e não uma Bond girl -- que era visto com roupas de banho, ajeitando o cabelo depois de um mergulho.

Pode parecer um detalhe pequeno, mas desde 1962, quando Ursula Andress saiu da água em 007 Contra o Satânico Dr. No, essa era uma imagem associada exclusivamente às mulheres da franquia. E tanto nos primeiros filmes, quanto no final dos anos 1990, com Halle Berry repetindo a iconografia em Um Novo Dia Para Morrer, esses momentos serviram ao chamado male gaze, tão característico do herói. Porque, como brincou a crítica de cinema na Veja e no Youtube Isabela Boscov, no bom português, "as Bond girls estavam lá para os tiozões da plateia ficarem refletindo, digamos, solitariamente sobre elas".

Logo, a aparição de Craig na praia era um bom presságio da relação do Bond com as mulheres à sua volta -- que se comprovou em alguma medida nos filmes seguintes, mas mais sobre isso em breve. Era, ainda, uma evidência do trabalho corporal que o ator fez para o papel. Embora ele fale hoje que sua primeira oficina para Cassino Royale tenha sido comprar vodka e vermute e tentar fazer seus próprios martínis -- um treinamento pertinente para o papel, convenhamos --, ele também se dedicou durante meses para ter o físico crível de um agente de campo do MI6. “Queria que ele parecesse e se comportasse como um assassino, porque é isso que ele é. Ele é um assassino”, relembrou no podcast oficial de Sem Tempo para Morrer.

A aclamação veio de vez com a estreia do longa, em 2006. Com direção de Martin Campbell, Cassino Royale desconstruiu e ressignificou elementos característicos do personagem de Ian Fleming, como seu próprio drink preferido, e adicionou uma camada nova ao seu subgênero: emoção.

"Vimos os Bonds anteriores passando por provações emocionais. No final de A Serviço Secreto de Sua Majestade, por exemplo, o Bond de George Lazenby perde a esposa, e vemos alguma dor ali. Mas são momentos", explicou a Dra. Lisa Funnell, professora associada de Estudos sobre Mulher e Gênero da Universidade de Oklahoma, e pesquisadora sobre gênero e geopolítica na franquia James Bond. "A era Daniel Craig é um continuum de emoção. Ele é um Bond bem mais vulnerável do que tínhamos visto antes".

E essa vulnerabilidade veio ao conhecermos o homem por trás do codinome 007. Em outras palavras, quando descobrimos quem é o James antes de ser Bond.

PRAZER JAMES. JAMES BOND

Um terno sob medida, um martini batido (e não mexido), um sex appeal sem precedentes e uma licença para matar. Não era preciso mais do que um punhado de elementos para caracterizar Bond, James Bond. Ou melhor, o agente a serviço da Coroa. Isso porque, ao longo das décadas, o homem por trás do codinome 007 foi mantido fora do alcance do público, com raríssimas chances de vislumbre da sua intimidade -- isto é, o que acontecia no seu mundo interno, e não na sua cama. Quem ele foi antes de integrar o MI6, e o que ele desejava depois dele estavam fora de cogitação. Sua competência e heroísmo, muito baseados nas suas habilidades na ação e libido, bastavam para compreendê-lo.

"Era quase como se ele fosse um aproximado do caubói clássico pré-Segunda Guerra Mundial, do John Wayne", explicou ao Omelete o professor de cinema da Universidade Estadual do Paraná Fábio Luciano Francener Pinheiro. “[A partir de Cassino Royale] os roteiristas o tiraram da redoma de vidro, daquele troféu de masculinidade, e o trouxeram para o mundo real”. Ou, como bem definiu a roteirista Phoebe Waller-Bridge no podcast oficial da franquia, os filmes da era Craig deram a chance de “espiar o que estava por trás da cortina”.

Um momento emblemático para entender essa virada está logo em Cassino Royale, no primeiro encontro entre Bond e Vesper Lynd. Rumo a Montenegro, onde o agente enfrentaria o vilão Le Chiffre (Mads Mikkelsen) em um campeonato de pôquer, o 007 conhece sua mais nova aliada, uma mulher atraente que não está convencida nem do seu charme, nem da sua competência. A resposta dele, como o homem arrogante que é, é se provar. Para sua surpresa, porém, o perfil instantâneo que traça sobre sua parceira revela mais sobre ele do que sobre ela. Afinal, é nessa breve troca que se descobre que a elegância de Bond não vem de berço, mas sim do seu treinamento. E mais: ele é órfão.

“É uma performance cheia de nuances”, descreveu Funnell. “São micro reações [que dizem] ‘uau, fui descoberto, mas eu meio que gosto dessa mulher’, e nos revelam mais sobre o Bond e as emoções associadas a isto”.

Embora lampejos desse passado encontrem brechas em todos os filmes, Operação Skyfall é o que mais revela quem ele foi um dia. Filho de Andrew Bond e Monique Delacroix Bond, James cresceu na Escócia em uma grande casa de campo chamada Skyfall. Foi lá, inclusive, que deu seus primeiros tiros sob as orientações do caseiro e colega de caça do pai, Kincade (Albert Finney). Contudo, não demorou muito para seu mundo desmoronar pela primeira vez: ainda na infância, perdeu seus pais em um inesperado acidente de alpinismo.

Aos 12 anos, foi adotado por Hannes Oberhauser, que o acolheu e o tratou como se fosse seu filho de sangue, como era de fato o jovem Franz (Christoph Waltz). Mas sua segunda chance foi também breve. Em menos de dois anos no seu novo lar, seu pai e irmão adotivos faleceram em uma avalanche -- ao menos, foi o que acreditou a vida toda -- e ele se viu diante do luto mais uma vez.

São esses detalhes, apresentados às vezes em fotos, recortes de jornal e lápides, que sinalizam como a morte é uma constante na vida de Bond, e não só porque ele é um assassino. Até porque nem a dureza do treinamento do MI6 o poupou do sofrimento. Assim como se viu impotente diante da perda dos seus dois núcleos familiares, ele foi incapaz de impedir a morte do seu grande amor e daquela que mais perto ficou de servir como uma figura materna, a M (Judi Dench). Em outras palavras, não dá para desassociar o Bond de Craig do trauma e do seu caráter falível.

"Isso torna o personagem muito mais humano do que o Sean Connery e o Roger Moore", analisou Pinheiro. "Com eles, você não tinha muita abertura para o pessoal ou para o erro. Eles não falhavam em nada: nem no sexual, nem no enfrentamento do inimigo". Para o professor da UNESPAR, essa mudança na era Craig foi uma das maneiras da franquia se atualizar, conversar com o mundo e, assim, manter-se viva -- mas sem abrir mão do que está no seu cerne, o que ele chama de “um pouco de ação, um pouco de romance”.

Então, se por um lado o Bond falha nos testes do MI6 e seu estilo bon vivant de ser ganha camadas mais terrenas -- "indícios de dependência alcoólica e química e rejeição patológica à autoridade, provocada por trauma de infância não resolvido", como descreve o arquivo em posse de Silva (Javier Bardem) --, por outro ele vive também frustrações românticas. "Ele aprende do jeito mais difícil que relacionamentos podem não ser a melhor coisa para os espiões. Vesper Lynd parte seu coração e isso o destrói de tal forma que o vemos lamentando a perda de uma parceira por um filme inteiro [Quantum of Solace], o que nunca vimos antes", exemplificou Funnell.

A jornada do Bond de Craig é, portanto, “despir-se da dureza e desenvolver sua humanidade”, como colocou o produtor Michael G. Wilson no podcast da franquia. Tanto é que, eventualmente, ele se abre para um novo amor nos braços da Dra. Madeleine Swann (Léa Seydoux) e se permite, sim, sonhar com uma vida além do serviço à Coroa. É claro que, para alguém como James Bond, caminhar em direção ao nascer do sol, na promessa do seu felizes para sempre, pode não ser tão simples assim, e Sem Tempo Para Morrer é a prova disso.

Destituí-lo, ao menos em alguma medida, desse posto de mito interessava aos roteiristas Neal Purvis e Robert Wade desde que começaram a estruturar essa era. Para eles, a cena que deu o tom para todos os filmes de Craig foi a perseguição em Madagascar. “Era física e crua. [Bond] não era tão bom quanto o cara que seguia, mas ele não parava”. Sem gadgets ou veículos luxuosos que o pudessem ajudar, naquela cena o novo 007 tinha como sua principal arma seu corpo, e até ele também era vulnerável.

Para a Dra. Lisa Funnell, o foco no seu físico indica a adoção de um novo modelo de masculinidade para o personagem. Afastando-se da tradição literária que Ian Fleming seguiu para criar seu herói, no qual "é considerado masculino aquele que é capaz de seduzir e satisfazer sexualmente as mulheres", entre outros elementos como seu cavalheirismo, "na era Daniel Craig adota-se um modelo masculino que lembra os heróis de Hollywood dos anos 1980 e 1990, que eram musculosos e muito baseados nos seus corpos", explicou a pesquisadora. "Então é sobre como o corpo [do Bond] aguenta a dor e a supera. Há cortes, arranhões e cicatrizes. Seu torso é um arquivo vivo de todos os traumas que passou".

Vale notar, porém, que há um twist nesse resgate dos heróis do final do século XX, porque o corpo do Bond por vezes é apresentado conforme se convencionou a retratar as mulheres, ou seja, fora da ação ele é visto pelo viés da "juventude, do espetáculo e da passividade ao olhar", como desenvolveu Funnell em pesquisa publicada em 2011 no The Journal of Popular Culture. Lembra do Bond saindo do mar? Pois então, esse é um ótimo exemplo dessa representação híbrida que o personagem ganhou, sobretudo, em Cassino Royale.

Mas, num contexto mais amplo, essa predileção de mostrar um lado brucutu do 007 esteve muito associado também à uma tendência da indústria no início dos anos 2000. “Daniel Craig entrou numa fase em que, de maneira até meio silenciosa, acontecia uma revolução no cinema de ação, principalmente por causa do [diretor] Paul Greengrass e da trilogia Bourne”, analisou a jornalista Isabela Boscov. E , de fato, essa interpretação foi corroborada pelo coordenador de dublês Gary Powell, em entrevista à Entertainment Weekly. “Jason Bourne virou o mundo da espionagem de cabeça para baixo com um novo estilo. Então não podíamos nos apegar à tradição do Bond e só fazer o que foi feito antes. Tínhamos que igualar e superá-lo. Isso significou torná-lo mais cru e realista”.

Para além de questões estilísticas, um evento foi decisivo para que os filmes de James Bond se distanciassem do que Boscov caracterizou como o “descompromisso” e “aquele sexismo alegre” da era Pierce Brosnan: o 11 de setembro. E não foi só essa franquia que mudou. A cultura pop como um todo foi remodelada. Basta observar o que aconteceu nos filmes do Homem-Morcego dos anos 1990 para o Batman Begins, de Christopher Nolan. Se antes as produções eram leves, coloridas e exageradas, depois do atentado às Torres Gêmeas elas ficam mais sombrias e carrancudas.

“[Os filmes] são mais realistas e você vê os heróis tendo dificuldades num nível pessoal, lidando com diferentes pressões que os heróis anteriores não articulavam por completo", esclareceu Funnell. Contudo, o caráter emocional e mais pé no chão não é a única influência do 11 de setembro na franquia James Bond: até mesmo os vilões tomaram outra forma de 2001 em diante.

O MUNDO É (MAIS QUE) O BASTANTE

Em um mundo dividido pela Guerra Fria, por mais complicados que fossem os obstáculos que um certo agente do MI6 pudesse encontrar em suas missões, reconhecer o inimigo não exigia muito esforço. Via de regra, bastava responder uma pergunta: é aliado da União Soviética? Se a resposta fosse afirmativa, ele tinha à sua disposição um impressionante arsenal de gadgets -- ou, no bom português, geringonças -- e até uma licença para matar. Contudo, com a queda do Muro de Berlim e, portanto, a desintegração do bloco socialista, a situação ficou mais nebulosa -- no mundo real e na ficção popular. "Amo a cena em O Amanhã Nunca Morre, em que acontece um bazar. Há foguetes da China, armas do Chile... Ela mostra que a Guerra Fria, no mínimo, criou uma estrutura conceitual em que você não sabe dizer quem está do lado de quem", apontou a Dra. Lisa Funnell.

Mas se o James Bond do Pierce Brosnan já lidava com uma boa leva de indefinições nos anos 1990, o herói de Daniel Craig pegou uma situação ainda mais peculiar. Após o 11 de setembro -- e também dos atentados de 7 de julho de 2005, em Londres -- “se confirmou um ambiente de adversariedade difusa e desencanto” que foi traduzido para as telonas, como lembrou a crítica Isabela Boscov. “Os roteiristas, diretores e produtores absorveram esse clima, e a sensação de impotência se tornou constante. O Bond agora não resolve mais tudo. As coisas se encadeiam e continuam, porque não há nada que possa ser resolvido em definitivo”.

Spectre é, talvez, o filme que melhor ilustra essa dinâmica. Ao entender que seu irmão adotivo está vivo e lidera uma organização criminosa, Bond percebe que todos os seus adversários até ali não eram ameaças isoladas. Pelo contrário. Quer agissem conforme seus interesses pessoais, como Le Chiffre, ou respondessem à uma cúpula do crime, como o Sr. White (Jesper Christensen), eles tinham conexões no mundo todo. Para usar uma analogia à la Marvel, não adiantava cortar uma cabeça, porque cresceriam duas (ou mais) no seu lugar.

O Bond estava, afinal de contas, diante de um mundo globalizado, e seus inimigos não eram mais nações. Na realidade, por vezes, eram apenas indivíduos que estavam ali, muito perto. Quando não na Europa, no seu próprio quintal. Relembre-os:

CODINOME: Le Chiffre

NOME REAL: Desconhecido

NACIONALIDADE: Albanês

OCUPAÇÃO: Contador

STATUS: Morto

PERFIL: Banqueiro particular dos terroristas, o Sr. Le Chiffre era um gênio da matemática que gostava de exibir suas habilidades no pôquer e muitas vezes apostava o dinheiro dos seus clientes. Ele sofria de hemolacria (lágrimas de sangue) e, por causa da doença, sempre levava consigo um inalador de benzedrina. Foi executado pelo Sr. White quando torturava o agente 007

AFILIAÇÕES: Quantum; SPECTRE

CODINOME: -

NOME REAL: Dominic Greene

NACIONALIDADE: Francês

OCUPAÇÃO: Ambientalista e fundador da Greene Planet

STATUS: Morto

PERFIL: Bilionário, Dominic Greene usava sua empresa dita ambientalista para obter o controle dos recursos naturais de países ao redor do mundo. Em um dos seus esquemas se aliou com o ditador boliviano, o general Medrano, para obter controle da água no país. Ele era parte da organização Quantum, que manipula o cenário geopolítico e financeiro mundial. Morreu no deserto do Atacama, com dois tiros na nuca e óleo de motor no estômago

AFILIAÇÕES: Quantum; SPECTRE

CODINOME: Raoul Silva

NOME REAL: Tiago Rodriguez

NACIONALIDADE: Desconhecida

OCUPAÇÃO: Terrorista cibernético; ex-agente do MI6

STATUS: Morto

PERFIL: Trabalhou para o Serviço Secreto em Hong Kong de 1986 a 1997, período no qual hackeou os chineses sem autorização. Por isso, ele foi entregue para as autoridades da China, que o torturaram durante 5 meses, em troca de seis agentes britânicos. Anos depois, ele construiu um império cibernético, capaz de manipular eleições e economias ao redor do mundo. Foi o responsável pelo ataque terrorista ao MI6 e pela morte da M. Morto com uma faca pelo agente 007

AFILIAÇÕES: SPECTRE

CODINOME: Sr. White; Rei Pálido

NOME REAL: Desconhecido

NACIONALIDADE: Desconhecida

OCUPAÇÃO: Assassino e membro influente nas organizações criminosas Quantum e SPECTRE

STATUS: Morto

PERFIL: Membro influente de organizações criminosas internacionais, o Sr. White tanto fez a ponte entre Le Chiffre e o comandante de um grupo extremista ugandês, quanto foi o responsável pela execução do banqueiro. É também uma das figuras que chantageou Vesper Lynd a colaborar com a Quantum. Esteve em custódia do MI6, mas conseguiu fugir com aliados infiltrados na Inteligência Britânica. Colaborou com o líder da SPECTRE, Ernst Stavro Blofeld, até desobedecê-lo por causa de um esquema que envolvia mulheres e crianças (potencialmente, tráfico humano). Foi envenenado com tálio e era um alvo da SPECTRE até cometer suicídio

AFILIAÇÕES: Quantum; SPECTRE

CODINOME: Blofeld

NOME REAL: Franz Oberhauser

NACIONALIDADE: Austríaco

OCUPAÇÃO: Fundador e líder da SPECTRE

STATUS: Preso, aguardando julgamento

PERFIL: Irmão adotivo do agente 007, Blofeld era dado como morto em razão de uma avalanche que, em teoria, matou também seu pai, Hannes Oberhauser. No entanto, foi ele quem assassinou Oberhauser por sentir ciúmes da sua relação com 007. Usando o sobrenome da mãe, criou anos depois a organização terrorista internacional SPECTRE, cujos crimes incluem tráfico humano, ataques terroristas e venda de produtos farmacêuticos falsificados. Esteve, direta e indiretamente, conectado com as atividades criminosas de Le Chiffre, Dominic Greene, Sr. Silva, Sr. White e Max Denbigh

AFILIAÇÕES: SPECTRE

CODINOME: C

NOME REAL: Max Denbigh

NACIONALIDADE: Britânico

OCUPAÇÃO: Diretor-geral do Serviço de Segurança Nacional (MI5 e MI6) e criador do sistema de vigilância Nove Olhos

STATUS: Morto

PERFIL: Arrogante e ambicioso, Denbigh usava os aparelhos do Serviço de Segurança Nacional para alimentar a SPECTRE com informações. Ele também estava determinado a usar sua posição de poder para acabar com o programa 00. Morreu ao cair do último andar do novo prédio do Serviço de Segurança Nacional, depois de ser desmascarado e capturado pelo M

AFILIAÇÕES: SPECTRE

CODINOME: -

NOME REAL: Lyutsifer Safin

NACIONALIDADE: Desconhecida

OCUPAÇÃO: Líder terrorista

STATUS: Ativo

PERFIL: Cruel e sádico, Safin é um xxxxxxxxxxx, cujo passado se conecta com a Dra. Madeleine Swann. Ele busca vingança por causa de xxxxxxxxxxx. Com cicatrizes no rosto, ele tem uma máscara tradicional japonesa

AFILIAÇÕES: censurado

Para Funnell, essa falta de clareza sobre quem é aliado ou inimigo pode ser vista como uma das razões para que a franquia tenha se debruçado mais sobre o lado emocional de Bond. “Se não há uma guerra do lado de fora que seja discernível, suas questões pessoais, com o Silva e o Blofeld, se tornam o foco”, disse -- e, de fato, essa análise faz muito sentido. Mas, para além da possibilidade do desenvolvimento de um lado inédito do personagem, a indefinição o obrigou a mudar seu modo de agir nas missões. “Não é só chegar matando e destruindo. Ele tem que investigar, reunir informações, para depois agir”, comentou Pinheiro. “Parece até que o James Bond do Daniel Craig tem mais trabalho”.

Como bem definiu o diretor Cary Fukunaga no podcast de Sem Tempo Para Morrer, “os filmes [do Bond] existem no seu próprio tempo, mas não muito especificamente. Quase como se estivessem em um universo paralelo”. Ou seja, as tramas são pensadas para encontrar ecos no mundo real, mas não necessariamente recriá-lo com exatidão. Então, ainda que não se nomeiem chefes de Estado, pode-se notar que preocupações do espectador contemporâneo vazam para a trama -- às vezes, à revelia da equipe, como contou Daniel Craig à GQ. "Tivemos dificuldade de manter Trump fora de Sem Tempo Para Morrer. Mas é claro que está lá. Sempre está lá, quer seja o Trump, o Brexit ou a influência da Rússia nas eleições".

Para não cair em spoilers sobre a despedida de Craig, que tal olhar novamente para Spectre para entender essa relação? O filme em si não traz o clima de instabilidade interno ao Reino Unido -- embora a ruptura com o bloco europeu tenha se concretizado somente em janeiro de 2020, o debate já era corrente antes --, mas retrata a noção da hipervigilância através da organização Nove Olhos. Além de questionar se programas como esse garantem ou não a segurança de nações e civis, o tema se traduz ainda em um ponto recorrente em toda a era Craig: o programa 00 ainda é necessário? E, portanto, Bond ainda se faz indispensável no século XXI?

As consequências do Brexit ainda estão para ser vistas na franquia. Embora dê para adiantar que, sim, há um subtexto sobre isolamento na própria trajetória do Bond em Sem Tempo Para Morrer, ele não enfrenta quaisquer consequências práticas da ruptura. “Como ele se moverá agora que não pode simplesmente pegar um trem, mas tem que passar pela imigração? E se ele quiser colaborar com algum aliado europeu, há tensões entre as agências por causa do Brexit?”, exemplificou a Dra. Lisa Funnell.

De modo análogo, a próxima fase precisará se atualizar em termos de representação. Porque, ainda que repense muitos dos elementos concebidos por Fleming na década de 1950, ainda há resquícios antiquados na sua narrativa, a começar pela manutenção do olhar imperialista britânico para as partes mais “exóticas” do mundo e para a própria caracterização física dos seus antagonistas.

“Há toda uma cultura que associa desfiguração facial à vilania”, explicou a Funnell. E, realmente, com exceção a Dominic Greene (Mathieu Amalric) em Quantum of Solace, todos os adversários do 007 na era Craig têm cicatrizes ou marcas no rosto para, em teoria, evocar medo ou horror.

Mas a verdade é que isso não é exclusivo dos filmes do James Bond: está presente em títulos diversos, como O Rei Leão e O Fantasma da Ópera. “É uma representação regressiva, baseada em estereótipos. E é tão problemática, porque cria estigma para pessoas que têm alguma deformidade física. Nos faz os encarar mais e questionar sua integridade”, analisou a professora da Universidade de Oklahoma.

Felizmente, a era Craig deu, sim, alguns passos interessantes para combater outro tipo de olhar problemático que sempre acompanhou o 007: o chamado male gaze. É hora de falarmos das Bond girls.

SOMENTE PARA SEUS OLHOS?

“As mulheres fazem o mundo do Bond”. A essa altura da franquia -- e, convenhamos, desta reportagem --, a frase da Dra. Funnell não deve causar estranhamento. Fosse nas obras originais de Ian Fleming ou nas várias versões do personagem que foram para os cinemas, o heroísmo do 007 sempre esteve pautado pela sua capacidade de sedução. Salvar o mundo era importante, é claro, mas conseguir driblar as desconfianças de uma donzela e trazê-la para seu lado como aliada enfatizava não apenas sua qualidade como espião, mas também como homem. Entretanto, esse processo de “domesticação” fazia mais do que apenas elevar o caráter de Bond: definia também a índole das suas parceiras, como desenvolveu a pesquisadora no artigo "Reworking the Bond girl Concept in the Craig Era", publicado em 2018.

“Se uma mulher com sexualidade liberal encontra o Bond, dorme com ele, o ajuda e vira sua namorada, ela é uma boa personagem, certo? Ela é domesticada e se torna a Bond girl do filme”, explicou Funnell ao Omelete. “Mulheres que não fazem isso, como Fiona Volpe [interpretada por Luciana Paluzzi em 007 contra a Chantagem Atômica], que critica seu heroísmo baseado no libido, não é considerada assim. Ela também é morta no final por representar uma grande ameaça a James Bond”.

Essa dinâmica foi mantida, em maior ou menor grau, ao longo das décadas. Enquanto nos anos 1960 você tinha mais personagens que flertavam com o vilanesco, nos anos 1970 e 1980 a domesticação era mais evidente -- possivelmente como resposta à segunda onda feminista, como apontou a professora. Nos anos 1990, com a Jinx de Halle Berry e a Wai Lin de Michelle Yeoh, a franquia expandiu o papel das mulheres: elas participavam da ação e estabeleciam uma relação de parceria maior com o 007 -- isso sem mencionar que, a partir daquele momento, o posto de M foi assumido por uma mulher. Mais uma vez, no plano de fundo estava um movimento social, no caso o pós-feminismo, que influenciou todas as produções de espionagem da época.

Portanto, como foram as questões geopolíticas, o retrato das mulheres também foi se adequando ao seu tempo, e a era Craig não foi exceção. Até porque, como salientou a jornalista Isabela Boscov, “seria risível se elas fossem meras coadjuvantes, ou não tivessem importância nos acontecimentos do filme. É o tipo de coisa que afundaria qualquer tentativa de tornar a série contemporânea”. Há de se notar, porém, que ao longo de quatro filmes -- deixemos Sem Tempo Para Morrer de fora da discussão, por enquanto -- a representação não foi homogênea. "Os primeiros filmes são revisionistas. Eles retrabalham os elementos da franquia e acrescentam outros. Spectre é reversionista", definiu Funnell. Mas o que isso significa?

Lembra quando falamos sobre o 007 ser um híbrido do Bond clássico e da Bond girl em Cassino Royale? Pois bem, esse é um exemplo do que a professora americana chama de “revisão”. Para ela, nos três primeiros filmes, o arquétipo da Bond girl é dividido entre dois ou mais personagens. Então, ao passo que Daniel Craig é apresentado dentro da iconografia da Honey Ryder, de O Satânico Dr. No, o corpo de Vesper Lynd não está à mostra -- nem mesmo quando os dois estão na cama. Ela está ali como interesse amoroso e, mesmo assim, ela não aceita tudo o que o Bond lhe diz. “Ela é mais completa e multifacetada”, explicou Funnell. “O que essa [nova] dinâmica fez foi abrir espaço para que as mulheres vivessem no mundo do Bond, mas fora daqueles parâmetros”.

Em Quantum of Solace, por sua vez, a divisão acontece entre Camille Montes (Olga Kurylenko) e a memória de Vesper. Isso porque o Bond está tão consumido pelo luto que ele sequer se envolve romanticamente com Camille. “Quando ele a beija, ela percebe que ele não é capaz de amá-la e vai embora. Esse é um dos momentos mais feministas da franquia. E é raro, porque geralmente tem a ideia de que ele vai terminar com a mulher, mas ele não o faz”, continuou.

Em Operação Skyfall, a situação começa a ficar um pouco mais complicada, mas a dinâmica se mantém. Moneypenny (Naomie Harris) é uma aliada na ação, mas não é seu interesse amoroso. Severine (Bérénice Marlohe) no primeiro momento parece perigosa e dá indícios de que poderia virar algo além do flerte casual, mas, na realidade, é prisioneira de Silva e acaba morta, como um apoio na “brincadeira” sádica de tiro ao alvo do vilão. Assim, a grande Bond girl é a M.

“Ela é a pessoa que ele mais ama. É um amor maternal, mas é a mulher que ele ama”, descreveu Funnell. “Mas também é vista como incapaz de se proteger e morre nos seus braços com um ferimento no ventre. Então, de novo, as qualidades das Bond girls estão espalhadas, mas as mulheres são sacrificadas para elevar o legado do Bond”.

Embora Spectre não envolva a morte de nenhuma personagem, a pesquisadora considera que Madeleine Swann dá um passo para trás, e ilustra uma tentativa da franquia de resgatar o que era feito décadas atrás. O terceiro ato do filme é o suficiente para entender o que ela quer dizer: Madeleine não apenas não tem sua escolha respeitada, como acaba como uma mulher presa no castelo, à espera do seu herói. No entanto, Funnell enxerga paralelos ainda mais explícitos com as Bond girls anteriores.

“Ela tem algo de muito familiar. O pai dela quer casá-la com Bond. Bom, isso remete a Teresa di Vicenzo [personagem de Diana Rigg] em 007 A Serviço Secreto de Sua Majestade. Ela é uma médica inteligente, mas que não quer colaborar com Bond. Lembra a Dra. Holly Goodhead [personagem de Lois Chiles], de 007 Contra o Foguete da Morte. Ela grita com Bond e é muito teimosa, como Natalya Simonova [personagem de Izabella Scorupco], de 007 contra GoldenEye. Ela é um composto de todas as mulheres que vimos no passado".

Diante disso, a Dra. Lisa Funnell torce para que a próxima fase traga uma “representação feminina mais positiva”. “Há maneiras de colocar as mulheres desempenhando papéis-chave sem morrer para que ele seja um herói”. A inclusão de Nomi, a personagem de Lashana Lynch, como uma agente 00, assim como a presença da roteirista Phoebe Waller-Bridge e o retorno de Madeleine Swann -- um fato revolucionário por si só, considerando que isso nunca aconteceu nos 24 filmes anteriores -- dão indícios promissores sobre a representação feminina em Sem Tempo Para Morrer. Mas que tal a gente retomar essa discussão depois que você ver o filme?

JAMES BONDS SÃO ETERNOS (OU QUASE ISSO)

A presença da agente Nomi em Sem Tempo Para Morrer foi o suficiente para que muitos espectadores sonhassem em ouvir a frase “meu nome é Bond. Jane Bond”. O contraste da personagem de Lynch, uma jovem habilidosa e antenada com as últimas invenções do Q (Ben Whishaw), com o experiente -- e, portanto, “mais velho, mas também mais esperto”, como descreveu Craig -- agente ecoava a dinâmica clássica da passagem de bastão. Eles teriam que trabalhar juntos apesar das muitas discordâncias e, talvez, até de uma antipatia mútua, mas eventualmente ganhariam a confiança um do outro a ponto dele a reconhecer como sua sucessora legítima. Um desenvolvimento um pouco paternalista, há de se reconhecer, mas que poderia implicar em uma guinada significativa para a franquia. Certo?

Bem, antes mesmo do filme ser adiado pela primeira vez, a produtora Barbara Broccoli pôs um basta em parte das especulações. Em entrevista para a Variety em janeiro de 2020, ela disse: "ele [James Bond] pode ser de qualquer etnia, mas ele é um homem", afirmação que foi endossada pelo próprio Daniel Craig há algumas semanas. Para o ator, as mulheres deveriam ter papéis tão bons e complexos quanto o Bond, em vez de simplesmente mudar o gênero de um personagem pré-existente.

No centro da discussão não está uma suposta descaracterização do personagem, mas o contexto da sua criação. Afinal, James Bond foi criado por um homem e em uma época em que a cultura era muito machista -- mais do que nos dias de hoje. Logo, mudar seu gênero poderia não ser suficiente para criar um protagonismo feminino de fato. De modo análogo, torná-lo uma pessoa não-branca não necessariamente seria a solução para a franquia ser mais inclusiva, porque, historicamente, o personagem também está associado a valores do passado imperialista do Reino Unido. Em outras palavras, refazê-lo mudando apenas um detalhe do seu perfil poderia não dar conta de resolver a ânsia do público por mais representatividade, nem afastar o Bond dos símbolos ao quais está atrelado há tanto tempo.

Ainda assim, é incontestável que a franquia precisa mais uma vez se atualizar, e não somente para repensar seus valores. "Para que Bond se mantenha relevante, é necessário entrar em uma nova fase e, então, liderar a cultura de espionagem. A questão é: como deixar as pessoas empolgadas para ver o filme?", questionou a Dra. Lisa Funnell. Está em jogo, portanto, não somente a diversidade dos seus personagens -- que poderia passar também por uma ponderação sobre a sexualidade e uma noção de gênero mais fluída do seu protagonista --, mas a própria narrativa. Diante de um cenário em que a Marvel, por exemplo, conecta suas histórias no cinema e no streaming, como 007 reagirá?

A definição de como será o novo reboot da franquia deve demorar para tomar forma. Broccoli declarou que a busca pelo novo James Bond ficará para 2022, ou seja, os fãs terão muito tempo para especular sobre quem pode substituir Daniel Craig. A bem da verdade é que eles já o fazem desde que o novo filme foi anunciado -- e há quem defenda, sim, mulheres e pessoas de outras etnias no papel. Confira alguns dos candidatos preferidos dos fãs nas redes sociais:

Independentemente das suas opiniões e preferências pessoais, não dá para negar que algumas características são esperadas do escolhido. “Antes de mais nada, um Bond tem que ter perigo”, defende a crítica Isabela Boscov. “O Sean Connery, que é o paradigma do Bond, era uma espécie silvestre, e o Daniel Craig, um pitbull -- adestrável, mas feroz. De alguma forma, [o ator] tem que passar essa sensação de perigo”.

A jornalista também acha imprescindível que o ator “não se deixe submergir pelo papel” -- que, segundo ela, é por essência “devorador” --, e seja britânico. “Não dá para pôr um americano ou um australiano para fazer o James Bond. [O personagem] tem um ethos britânico muito forte”.

Neste ponto, Funnell concorda em partes ("se a pessoa tiver um sotaque que seja reconhecível ou considerado dentro da esfera de quem é o Bond, a escalação é possível"), e acrescenta outros itens na lista de requisitos, entre os quais carisma. “A pessoa precisa atrair o público independentemente do roteiro, e ser capaz de carregar a narrativa”, argumentou.

Funnell também julga importante que a pessoa seja capaz de continuar dois dos elementos trazidos por Craig à franquia, isto é, a capacidade de adicionar nuance ao personagem e o comprometimento com as cenas de ação. Para ela, isso não significa ter um tipo físico específico, mas sim disposição para se entregar ao lado mais físico do papel e, então, garantir que a franquia possa competir com outros filmes do gênero.

Com tudo isso em mente, a pesquisadora considera apenas um nome: Idris Elba. “Ele é o Bond que nunca teremos”, afirmou. “Ele tem a presença cinematográfica, o sex appeal e seus próprios maneirismos. Daniel Craig ajeita as abotoaduras, certo? Toda vez que o Idris Elba senta, ele alisa a gravata”. Ainda assim, Funnell reconhece que escalar um homem negro como Bond poderia ser complicado.

Boscov também apoia Idris Elba, mas seu candidato ideal mesmo está fora da lista de apostas populares. “Adoraria ver o Dan Stevens no papel. N’O Hóspede, ele faz um psicopata super persuasivo e sedutor. Depois de ver esse filme e, pasme, Festival Eurovision, acho ele genial. Como é que não chamaram ele?”.

Enquanto tudo parece possível no universo do 007, o futuro de Daniel Craig está muito bem resolvido. Embora esteja se aposentando de seus dias como espião e, portanto, deixando para trás as missões luxuosas e fisicamente custosas em nome da Coroa, o ator não abandona de vez o lado mais investigativo dessa vida. Ele volta à ativa como detetive Benoit Blanc nas sequências de Entre Facas e Segredos. Sim, Craig já tem uma nova franquia para chamar de sua, e logo logo seremos introduzidos às novas eras, tanto do ator, quanto do 007. Porque se ele agora não tem tempo para o Bond, nós temos de sobra -- aliás, para os dois.

Publicado 04 de Outubro de 2021
Coordenação Jorge Corrêa
Edição Beatriz Amendola
Direção de Arte Luiz Torreão
Designer Renan Sanches
Designer Kaique Vieira
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