Música

Artigo

Uma década sem Amy e ainda não deu para superar a falta que ela faz

Para além da tragédia em si, a ausência da cantora e compositora no cenário musical segue dolorosa

23.07.2021, às 11H18.

O delineado preto, o penteado extravagante, as tatuagens e a aura retrô. Não são necessárias muitas palavras para dar conta da singularidade da figura da cantora Amy Winehouse. Nos anos 2000, você sequer precisava ter ouvido uma música dos aclamados álbuns Back to Black e Frank para reconhecê-la. Quando não estampava capas de tabloides e jornais do mundo inteiro em fotos ingratas -- acompanhadas de manchetes ainda mais cruéis --, o visual icônico era facilmente encontrado em lojas das mais variadas e, francamente, qualquer barraquinha de artesanato que prestasse. A londrina virou camiseta, caneca, boneca, bottom, fofoca, piada… em resumo, um produto extremamente vendável.

Agora, colocar em palavras o legado da artista Amy Winehouse é uma tarefa bem mais complicada. Dez anos depois da sua morte, a cantora e compositora é uma ausência gritante no cenário cultural. Não há, entre os destaques do pop atualmente, uma voz ou uma letrista que seja tão autêntica quanto ela, nem que seja capaz de transformar em poesia histórias de amor brutalmente honestas (e até ásperas), sem perder o senso de humor. Que outra pessoa hoje poderia trazer tanta classe para uma música tão dura (e irônica) como “Stronger Than Me”? Ou despedaçar um coração com tanto charme e grosseria gentil como ela faz em "I Heard Love is Blind"?

As palavras de Amy eram de uma originalidade rústica e, por isso, ainda que seja quase unanimidade entre os artistas voltar-se ao passado em busca de inspiração, são poucos aqueles que conseguem ir além do produto manufaturado e fazer da nostalgia uma expressão genuína na sua personalidade -- como ela fez na sua curta carreira. Amy era apaixonada por jazz e pelas pin ups dos anos 1950, e respeitava-os demais para emular ou revisitá-los levianamente. Do mesmo modo, como contou ao The Fader o produtor Mark Ronson, que trabalhou com ela em Back to Black, “Amy levava suas palavras a sério”.

“Quando ela cantou o refrão pela primeira vez (“We only said goodbye in words / I died a hundred times”), meu instinto de produtor apitou e eu disse ‘desculpa, mas precisa rimar, está estranho. Você consegue consertar?’, e ela apenas me olhou como se eu fosse louco. ‘Por que eu consertaria? Foi o que saiu’”. Ou seja, Amy sabia muito bem o que queria dizer e como queria dizê-lo.

Essa confiança enquanto performer e letrista foi decisiva não apenas para alçar seu trabalho ao patamar do clássico moderno, mas também para abrir caminhos para tantas outros artistas, sobretudo mulheres, no pop mundial. A Lady Gaga chegou a dizer que Amy Winehouse tornou a cena musical menos banal e mais acolhedora para a chegada de “artistas excêntricos”. Adele, por sua vez, creditou parte do seu sucesso nos Estados Unidos à maneira como Amy resgatou o interesse do mundo pela música britânica. Já Florence Welch afirmou que vê-la se apresentando em Glastonbury foi a comprovação de que há, sim, espaço para cantoras-compositoras no mundo. Esses são apenas três exemplos, mas certamente não são os únicos. Até porque Amy inspirou confiança em mulheres para além dos palcos.

Por isso, o aniversário da morte de Amy Winehouse não deveria ser uma ocasião para engrossar o coro do mito dos 27 anos, como se tivesse algo de positivo numa coincidência trágica como esta. Ou, então, tratar sua luta contra a dependência química da mesma maneira simplista e banal que os tabloides fizeram na época -- afinal, ela foi tão vítima dessa cultura bizarra e abusiva quanto Britney Spears, e já ficou claro o quão cúmplice leitores e publicações foram nessa barbaridade.

Não se trata só de uma questão de moralidade, mas realmente de relevância. Lembrar de Amy apenas a partir dessas facetas é desmerecer a sua excepcionalidade enquanto artista. Quer você tire o dia para ouvir seus álbuns, rever apresentações e documentários, ler (e revisitar) tributos variados ou simplesmente tirar da gaveta sua camiseta com o icônico penteado dela estampado, tente vê-la novamente -- senão pela primeira vez -- não como um produto, mas como a mulher talentosa, sensível e complicada que foi. Afinal, é dela que sentimos falta.

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