Ato Noturno começa com um conspícuo zoom em Matias (Gabriel Faryas), ator de uma companhia de teatro prestigiada de Porto Alegre, que ensaia uma nova peça e agora é visitada pela diretora de elenco de uma grande série que será filmada nos arredores. Durante as quase 2h que se seguem, os diretores e roteiristas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon (Tinta Bruta) empregam esse recurso algumas outras vezes, num aceno claro às estratégias de autores vulgares dos anos 1970 e 1980, como Brian De Palma, Adrian Lyne e Joel Schumacher.
A ideia, inclusive expressa pelo duo durante o breve papo com o público antes da minha sessão de Ato Noturno na 49ª Mostra Internacional de São Paulo, é resgatar os suspenses carregados de erotismo que esses e outros cineastas construíram durante uma fase em que Hollywood estava investindo mais pesado no velho adágio do “sexo vende”. Com uma construção visual forte e uma trama tensa, em que a ameaça da violência paira sob personagens que se apunhalam nas costas mutuamente, Ato Noturno tem tudo para ser um flashback de qualidade para esse período… mas há algo mais antigo aqui, também.
Muito antes da explosão do thriller erótico, veja bem, Alfred Hitchcock estava por aí contando histórias de perversões psicossexuais através da sugestão. O vestido aveludado de Grace Kelly, rejeitada por um James Stewart obcecado pelo assassinato de um vizinho em Janela Indiscreta; Tippi Hedren, traumatizada por memórias reprimidas, forçada por Sean Connery em cena infame de Marnie: Confissões de Uma Ladra; a tensão homoerótica que corre por filmes como Rebecca: A Mulher Inesquecível e Festim Diabólico. Dentro do código de censura hollywoodiano, Hitchcock falava de sexo o quanto podia.
Matzembacher e Reolon não têm essa limitação, é claro. Daí a referência ser De Palma, e não Hitch – mas os dois nomes, de qualquer forma, têm sido conectados desde sempre nos círculos cinéfilos. Quando Ato Noturno empresta técnicas de um, então, elas remetem a outro, e as reviravoltas dessa trama toda baseada nas relações de poder (e de perder) entre os personagens criam um clima de suspense dramático que deve pouco ao olhar mais cínico da Nova Hollywood. Em outras palavras, essa não é uma sátira.
A visita da tal diretora de elenco ao ensaio da peça gera um convite para Fabio (Henrique Barreira), colega de quarto do nosso protagonista, interpretar um papel de destaque na série. Ao mesmo tempo, Matias começa a sair com um rapaz que conhece num aplicativo: Rafael (Cirillo Luna), que concorre a prefeito da capital gaúcha e, temeroso da reação pública, se recusa a assumir a homossexualidade publicamente. Enquanto a rivalidade entre os amigos se acirra, o relacionamento de Matias e Rafael dança ao redor da clandestinidade, balizada pelas ambições de ambos.
Para encenar esses conflitos, Matzembacher e Reolon revelam uma Porto Alegre de dureza metropolitana, salpicada de luzes azuis que deixam sombras longas no asfalto. É outro exercício de gênero, operado principalmente pela fotografia de Luciana Baseggio (Continenete), que reconhece o espectro do film noir, mas injeta algo de mais imediato nas ameaças que apresenta aos personagens, uma sujeira urbana menos disfarçada que rima com o tesão aflorado dessa abordagem contemporânea do thriller erótico.
Ato Noturno, no entanto, não é um devoto do realismo. A sua ideia de suspense, de fabricar um perigo cinematográfico, é tão teatral quanto a apresentação que os protagonistas ensaiam – e, eventualmente, apresentam – em cima dos palcos porto-alegrenses. Parte disso é ter um elenco todo que entende, acima de tudo, como impostar a artificialidade essencial do roteiro para que ela não se traduza em alienação, e um protagonista (Faryas, cria do teatro, faz aqui sua estreia na tela grande) especialmente brilhante em tal exercício.
Talvez por isso, mesmo não tendo a postura da Hollywood clássica, Ato Noturno remeta tanto a Hitch. Eis aqui, como eram os filmes do mestre do suspense, um engodo mortalmente sério, e um drama sério profundamente enganador.
*Ato Noturno foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa chega ao circuito comercial no dia 15 de janeiro, com distribuição da Sessão Vitrine Petrobras.