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Autorias e responsabilidades nos quadrinhos: uma discussão provocativa

Autorias e responsabilidades nos quadrinhos: uma discussão provocativa

28.05.2003, às 00H00.
Atualizada em 11.11.2016, ÀS 06H09

Pateta de Igayara

Contos da Cripta da EC Comics

Ilustração de André Le Blanc

Archie

Patoruzu, de Dante Quinterno

Raio Negro, de Gedeone Malagola

Mônica

Recentemente, a temática da correta atribuição de responsabilidades autorais nas histórias em quadrinhos voltou à baila a partir de um texto sobre os quadrinhos Disney, em que se questionava a política, até então adotada pela editora brasileira desses materiais, de jamais creditar os autores das histórias. A matéria teve repercussão entre leitores e editores, fazendo com que, depois de algum tempo, a editora brasileira decidisse rever seus critérios: assim, a partir de junho de 2003, todos os quadrinhos Disney publicados por ela terão seus créditos de autoria devidamente registrados (roteirista, desenhista, arte-finalista, etc.), quando traduzidos de publicações estrangeiras e tiverem sido creditados em seus países de origem (isto vale tanto para histórias inéditas como para aquelas já publicadas anteriormente no Brasil e futuramente reeditadas por aqui); quanto às histórias produzidas por autores brasileiros - como as de Renato Canini, Waldyr Igayara e tantos outros, estarão, no entanto, sujeitas à decisão da editora.

Esta última determinação levanta várias questões. A mais saliente diz respeito à estranheza sobre a exclusão dos autores brasileiros de uma norma que também os beneficiaria, deixando-os reféns dos ânimos e predisposições dos editores do momento. É intrigante que tal diretiva tenha sido tomada, deixando uma ameaça implícita a todos os criadores de histórias em quadrinhos Disney nacionais: olhem lá, comportem-se bem, porque senão Papai Disney não deixará que os nominhos de vocês apareçam em suas historinhas!!!...

Para dizer de forma delicada: a medida é injusta. Para sermos honestos: ela é discriminatória. A rigor, nada justifica a utilização de dois pesos e duas medidas para autores de histórias em quadrinhos, classificando-os segundo sua nacionalidade. Mas, por outro lado, é também compreensível que a mudança de uma regra com mais de meio século de existência não possa ser feita de maneira imediata. Toda empresa tem políticas internas que acompanham a cultura organizacional ali predominante e modificações nessa cultura dependem de negociações, acordos, concessões de parte a parte, estabelecimento de novos compromissos, enfim, de uma série de passos que nem sempre ocorrem de forma bastante tranqüila. Uma editora de histórias em quadrinhos - principalmente uma que faz parte de um conglomerado de organizações voltadas para as mais diversas áreas de comunicação -, não é diferente. Assim, a determinação oficialmente comunicada ao público leitor de histórias em quadrinhos do país pode apenas representar o máximo que foi possível atingir no presente momento. Isto não significa que os responsáveis pela publicação dos quadrinhos Disney no Brasil deixarão de se esforçar para obter a garantia de que a mesma regra aplicada aos autores estrangeiros possa ser também estendida, sem restrições, aos autores nacionais. Pelo contrário, até. Da mesma forma, a diretiva atual não deve fazer esmorecer a pressão para que toda autoria de história em quadrinhos, ocorra onde ocorrer, tenha que característica tiver, seja devidamente reconhecida e registrada. Os autores o merecem. E os leitores também.

UMA PRÁTICA POUCO HABITUAL

O reconhecimento da autoria e responsabilidades nos quadrinhos, por mais evidente e necessário que possa parecer atualmente, nem sempre foi uma constante nas publicações, tanto nacionais como estrangeiras. Pelo contrário, pode-se afirmar que a prática de elucidar, nas próprias publicações, a verdadeira autoria das histórias, não foi correntemente adotada durante bem mais da metade dos mais de cem anos de existência dos quadrinhos como meio de comunicação de massa. De fato, considerando-se o mercado norte-americano, o grande responsável pela globalização dos quadrinhos, por meio da atuação dos Syndicates e pela exportação dos comic books, essa prática tornou-se generalizada apenas a partir da década de 60, quando a editora Marvel Comics, pelas mãos de Stan Lee, passou a investir fortemente na divulgação dos nomes de desenhistas e roteiristas como um meio de criar um ambiente familiar no relacionamento com os leitores. Antes disso, tentativas esparsas de crédito aos autores haviam ocorrido, como as da editora EC Comics, mas haviam encontrado resistência no meio editorial para se firmar como uma prática corrente. Alguns pesquisadores de quadrinhos chegam até mesmo a creditar a derrocada da EC muito mais a uma estratégia deliberada, dos demais empresários do setor, para frear uma prática editorial nociva a seus interesses, do que, propriamente, aos efeitos da campanha difamatória contra os quadrinhos durante a década de 50.

Nos Estados Unidos, a discriminação da autoria nos quadrinhos ocorreu, pelo menos no que diz respeito aos comic books, muito mais como uma estratégia de marketing por parte dos editores do que como fruto de uma conscientização geral da comunidade quadrinhística ou como pressão de uma ou mais categorias profissionais. Na Europa, essa discriminação ocorreu de forma muito mais natural, talvez devido às características do ambiente editorial do Velho Continente, no qual os autores já trabalhavam normalmente em duplas criativas (roteirista/desenhista) e eram muito mais atuantes na constituição de revistas da área (grandes títulos de quadrinhos tiveram à frente autores e não editores profissionais, como ocorreu com Journal de Tintin e Pilote).

No entanto, mesmo no ambiente europeu, ainda é comum ocorrer que revistas de quadrinhos produzidas por estúdios de desenhistas deixem evidente apenas o nome do proprietário do estúdio - normalmente um grande autor da área -, e calem-se totalmente a respeito da contribuição individual de legiões de trabalhadores que atuam como ghosts (fantasmas) para ele. Isso também vai ocorrer nos funnies, os quadrinhos distribuídos pelos Syndicates norte-americanos, quando o autor original contrata auxiliares para apóia-lo em sua produção diária ou semanal. Durante anos, por exemplo, o desenhista haitiano André Le Blanc foi ghost de Sy Barry nas histórias do Fantasma, sem receber créditos por seu trabalho. Que dizer, então, dos inúmeros auxiliares empregados nos estúdios de autores como Jim Davis (Garfield), Scott Adams (Dilbert) ou Mort Walker (Recruta Zero)? Até mesmo consagrados ícones dos quadrinhos como o grande Will Eisner, utilizaram-se (ou utilizam-se ainda) desse tipo de auxiliares em seu trabalho criativo, sem creditá-los devidamente. Ninguém é perfeito.

PECADO EDITORIAL

Ainda que muito se tenha avançado na questão da correta identificação de autoria nas publicações de quadrinhos, deve-se reconhecer que muito existe a ser feito. Ainda hoje, muitas editoras não reconhecem publicamente a autoria de desenhistas e escritores em suas publicações, omitindo totalmente seus nomes ou fazendo-os constar de uma lista geral de colaboradores, no expediente, normalmente localizado no final das revistas. Isso é muito pouco em termos de reconhecimento público de uma atividade intelectual e criativa digna de distinção, mesmo quando elaborada em ambiente industrial. Nesse sentido, o esforço para mudar totalmente esse estado de coisas é mundial e não se vincula apenas ao ambiente quadrinhístico editorial brasileiro. Neste caso, ainda que a decisão dos editores das revistas Disney no país deva ser celebrada e devidamente louvada em seus aspectos positivos, há necessidade de manter um olhar atento ao restante do mercado produtor, que transmite uma atmosfera diversificada em relação ao crédito de histórias em quadrinhos. Infelizmente, estúdios de produção de quadrinhos e grandes autores do país ainda não divulgam corretamente os nomes de seus colaboradores.

Neste último caso, ainda que não isolado no universo editorial do país, destaca-se a produção oriunda dos estúdios de Maurício de Sousa, o criador da Turma da Mônica, idolatrado por crianças e adultos e identificado sempre como o grande exemplo de autor de quadrinhos que acertou na vida, transformando-se em um grande e bem sucedido empresário do setor.

Nas revistas de Maurício, hoje publicadas pela Editora Globo, o único nome creditado nas histórias é o seu próprio, dando a idéia, para o desavisado público leitor - composto principalmente por crianças -, que é dele a mão por trás dos desenhos que a todos fascina e que vêm de sua cabeça altamente dotada as idéias para a enorme variedade de histórias maravilhosas que divertem, alegram, distraem e encantam gerações inteiras de um fiel público leitor. Isto, desde o ano de 1959, quando Maurício publicou sua primeira revista em quadrinhos (Bidu, pela Editora Continental).

Sob o ponto de vista empresarial, a decisão de destacar apenas o nome de Maurício de Sousa pode ser justificada pelo argumento de que não se mexe em time que está ganhando. Afinal, o pai da Mônica já tem seu nome profundamente enraizado na cabeça de seus leitores - podendo-se até dizer que faz parte de seu inconsciente coletivo... -, garantindo um retorno imediato de qualquer produto que tenha a sua marca. Por que, considerando-se essa universal aceitação do autor, apostar em nomes desconhecidos do público, como, por exemplo, o humilde roteirista que elabora as histórias do Chico Bento ou aquele anônimo e pobre desenhista que arte-finaliza as aventuras do Cascão? Assim, é preciso reconhecer que decisão empresarial tem lógica: a do lucro imediato e do retorno do investimento no mais curto espaço de tempo possível. Ela peca, no entanto, em termos da lógica inerente à justiça social, que manda reconhecer tanto os esforços individuais como os coletivos. E peca, também, por não vislumbrar um futuro mais distante que o deadline para colocação da próxima leva de revistas nas bancas. E este último pecado pode não ser apenas danoso, em longo prazo, para a Turma da Mônica. Ele pode ser suicida.

Infelizmente, Maurício não é eterno. Ainda que lhe desejemos ardentemente muitos anos mais de fecunda atividade, mais cedo ou mais tarde - e queira Deus que mais tarde, bem mais tarde... -, voluntária ou involuntariamente, ele terá que se afastar dos quadrinhos. Que acontecerá com seu universo criativo, então. Seu nome parece estar por demais vinculado às personagens para que se tenha certeza de que elas terão fôlego para prosseguir guiadas por outras mãos que não as dele. As respostas são por demais incertas para as muitas perguntas que a perspectiva de seu afastamento pode suscitar: aceitarão tranqüilamente os leitores saber que ele não desenha mais as histórias? Verão nas personagens os mesmos encantos de antes? Mantida a mesma política de não identificação dos criadores reais, não se sentirão os leitores logrados por ter as personagens de Maurício atuando sob uma personalidade virtualmente inexistente? Devemos achar que às crianças a questão da autoria real é de menor importância e que tudo continuará como antes, esteja Maurício presente ou não junto com suas personagens? Ninguém, de fato, poderia dar respostas definitivas para qualquer uma dessas questões.

Exemplos positivos de continuidade de personagens mesmo após o desaparecimento do autor original, vinculados exclusivamente ao nome deste, existem vários, como Archie, Little Lulu e todas as produções de Hanna & Barbera. No entanto, os casos apontados envolviam personagens veiculadas em um ambiente muito mais avançado enquanto indústria cultural que o brasileiro. Tentativas similares no ambiente latinoamericano não deram certo. Como exemplo disso, basta lembrar a triste sina de Patoruzu, Patoruzito e Isidoro, criados por Dante Quinterno, na Argentina, hoje restritos apenas a republicações de histórias aparecidas quando seu autor, hoje aposentado, ainda estava atuante.

Enfrentarão as criações de Maurício a mesma sorte? Pode-se torcer para que não. Mas, permanecendo as coisas como estão, é tudo uma grande incógnita. Uma incógnita que também infernizará a vida dos futuros pesquisadores brasileiros de quadrinhos, quando tentarem realizar a exegese da produção de Maurício e não conseguirem identificar os diversos colaboradores escondidos sob a trademark do nome do criador das personagens. E, para eles, pouco importará se os motivos causadores de suas dificuldades de pesquisa se deveram a uma estratégia comercial vitoriosa ou fracassada. Como pouco importa, aos pesquisadores de hoje, as razões para suas dificuldades ao tentar identificar a contribuição, aos quadrinhos, de tantos autores do passado.

Nesse sentido, vale a pena ilustrar essa questão com o depoimento de um autor veterano dos quadrinhos brasileiros, Gedeone Malagola, em recente depoimento ao projeto Memória Viva do Quadrinho Brasileiro, do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Perguntado sobre os motivos pelos quais grande parte de sua vasta contribuição como roteirista às editoras brasileiras de quadrinhos não estava creditada nas revistas, ele respondeu, entre jocoso e crítico, que os editores de então temiam que, creditando os artistas, estes se tornassem conhecidos do público, famosos mesmo, e que, por causa disso, solicitassem aumento de salário...

Visão mais estreita não poderia existir, é claro. Mas ela é até desculpável, dados o ambiente e a mentalidade da época. Nos dias de hoje, no entanto, tal estreiteza não se justifica. O conceito de autoria em quadrinhos já está suficientemente firmado para ser colocado em segundo plano. Ou para que não se atente às conseqüências presentes e futuras de sua supressão, seja para os autores (tanto o principal como os colaboradores), seja para os leitores, seja para os pesquisadores da área.

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