Brincando de matar monstros

Gerard Jones - Ed. Conrad

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Uma antiga discussão sobre a violência na mídia e seus efeitos sobre os jovens vem à tona de modo inédito e revelador com o livro Brincando de matar monstros, lançado pela Conrad Editora.

A questão é analisada sob vários aspectos pelo roteirista de quadrinhos americano Gerard Jones, que publicou a obra nos Estados Unidos em 2002. Por meio de diversos exemplos, o autor apresenta argumentos sensatos e questiona pesquisas e relatórios que relacionam de modo tendencioso a violência na mídia com os índices de criminalidade. Segundo ele, a ausência de uma válvula de escape na forma de entretenimento de tema violento pode contribuir para que a violência se manifeste na vida real.

Em diversos pontos, questiona se são os adultos ou os menores que confundem realidade com ficção. Segundo sua interpretação, a maioria das crianças sabe que matar de brincadeira durante um jogo é apenas parte do faz-de-conta, sem que, com isso, esteja se preparando para matar de verdade quando crescer. E a preocupação externada por alguns adultos pode causar desconforto aos pequenos, que ficam com medo de suas próprias reações ao dar importância exagerada ao que deveria ser somente uma brincadeira.

Ele também ressalta a importância de brincadeiras violentas sem excesso, presentes em qualquer cultura (incluindo as que não têm acesso à TV), para que as crianças saibam lidar de modo controlado com algo que, no fundo, as assusta. Para Gerard Jones, em vez de insensibilidade em relação à violência, essas brincadeiras dão aos jovens uma sensação de poder e controle, coisas que sentem que não têm na vida real.

Com amparo familiar, essas fantasias podem ajudar não apenas a extravasar medos e ansiedades, mas também a lidar de modo seguro com assuntos perigosos, tirando assim a necessidade de enfrentá-los na realidade. E tal necessidade, não de violência, mas de poder e controle, é sentida também em meninas que, em determinado momento, desejam se sentir femininas e poderosas.

Ao mencionar a adolescência como uma época de questionamentos e transformações, Gerard Jones cita ídolos da música, como rappers de pose e letras agressivas. Seriam catalisadores de desejos de ousadia, poder e liberdade. Papel semelhante é encontrado em personagens de TV, quadrinhos, filmes e games.

REFERÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

O livro é bem atual, com citações a Buffy, Pokémon, Britney Spears, Harry Potter, Star Wars, Superman, Power Rangers, Eminem, Ice-T, jogos como Doom e uma enorme variedade de produtos da cultura pop. Cita ainda eventos de grande repercussão, como o incidente do tiroteio na escola Columbine e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, analisando como tais fatos fizeram aumentar a ansiedade e a paranóia com relação à violência, afastando as discussões sérias. O livro também faz ver com outros olhos o que pessoas cultas e maduras classificam como mau-gosto, mas que, inequivocamente, fazem sentido para as necessidades emocionais de muitos.

Por meio de muitos exemplos e depoimentos, Jones traça um amplo painel de discussão sobre os possíveis efeitos benéficos do entretenimento nas fase de desenvolvimento da personalidade. Acima de tudo, frisa que não existe mídia com mais força do que uma reles conversa familiar e que os pais devem acompanhar ao que o filho assiste, ouve ou joga, mas sem querer impor seu gosto pessoal.

O diálogo entre gerações é defendido em vários pontos do livro, com a ressalva de que o adulto sempre deve tentar se por no lugar do jovem, sem querer julgar e dar todas as respostas. Igualmente importante é saber ouvir e tentar entender o que motiva as ansiedades canalizadas no gosto por coisas que chocam adultos preocupados. Adultos que, como o autor faz questão de lembrar, já foram crianças e tiveram suas fantasias sobre violência sem terem se transformado em psicopatas. A raiz da criminalidade estaria tanto em tendências patológicas como em ambientes sociais e familiares problemáticos, mas jamais em peças de entretenimento.

Sobre a banalização da violência, ele afirma que a infância de hoje, mesmo exposta a tantas cenas de crime como se diz, é mais sensível à violência por ter mais informação. Como exemplo, lembra que, décadas atrás, era comum ver garotos brincarem matando pequenos animais ou cortando o rabo de gatos, coisa impensável para a maioria das crianças da atualidade.

UMA VISÃO CLARA E HONESTA

Tanto empenho e didatismo levaram Gerard Jones a debates, conferências e palestras, sendo visto como uma autoridade nos Estados Unidos sobre mídia e seus efeitos.

Há também uma reflexão em torno da própria mentalidade norte-americana em relação ao mundo. Segundo o que Jones ouviu de um produtor da emissora BBC, a cultura católica presente na Irlanda (e também entre povos latinos) é lírica, trabalhando com emoção, simbolismos e arte. Já a cultura protestante americana seria literal demais, buscando uma realidade única, racional e objetiva para o mundo, o que até faz lembrar a política externa da terra do Tio Sam. Essa literalidade é que entraria em conflito com o lado mais sonhador e inofensivo das brincadeiras infantis e fantasias escapistas.

O autor já é conhecido do público brasileiro leitor de quadrinhos. Nos anos 80, escrevia os diálogos hilariantes da série Liga da Justiça Europa, publicada no Brasil pela Abril Jovem. Também trabalhou com adaptações de mangás para o inglês, como Ranma ½ e vários outros títulos.

Em sua visão e experiência de trabalho como autor de quadrinhos na indústria americana, as HQs aparecem como sinônimo de super-heróis coloridos para adolescentes. Ele, inclusive, cita que alguns colegas de profissão vivem imersos e presos em mundos imaginários, sem amadurecer de fato. No livro, porém, não se menciona (mesmo porque não era o caso) que os gibis, tal como o cinema, não se restringem apenas a fantasias de poder infanto-juvenil. Para quem não tem acesso a outras informações sobre HQs, pode ficar esta impressão errônea.

A obra deveria ser lida por pessoas que promovem ações inócuas e oportunistas como uma recente campanha de desarmamento infantil, que trocava armas de brinquedo por gibis com o argumento simplista de que brincadeiras violentas geram adultos violentos. Eis aí uma bobagem e uma hipocrisia que Brincando de matar monstros ajuda a desmistificar. Nunca a questão da violência na mídia teve um tratamento tão inteligente, esclarecedor e honesto.

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