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O que é film noir?

De clássicos dos anos 1940 aos neonoir contemporâneos, traçamos as regras do gênero

Omelete
6 min de leitura
17.04.2024, às 14H05.

O noir é o gênero conhecido até hoje pelos suspenses envolvendo mistérios policiais moralmente carregados; alguns dos seus personagens tradicionais transcendem os moldes do gênero, como o detetive particular de poucas palavras e a mulher fatal. A estética consagrada que dá nome ao gênero carrega nas sombras, como uma manifestação dos cantos escuros da alma.

O contexto da criação do noir envolve a Lei Seca nos EUA, instituída em 1920 para coibir o consumo de bebidas, mas que terminou incentivando o crime organizado. Os filmes de gângsteres dos anos 1920/1930, que fizeram a fama de atores como James Cagney, foram coibidos com a criação do Código Hays a partir de 1934, e seus temas (contravenção, intrigas, violência, perversão) acabaram acomodados nesse grande guarda-chuva que era o filme “sombrio”. (O “sombrio e realista” já existe há 100 anos, portanto.)

O Código esteve muito atuante até meados dos anos 1950, e nessas décadas a produção do noir era vista como barata e duvidosa. Fox, Paramount, Warner Bros e MGM produziam e exibiam como sessão B; Columbia, RKO, Universal, United Artists evitavam fazer. Mesmo os filmes indicados ao Oscar terminavam desprezados, embora esse período seja entendido hoje como o mais rico do gênero. Um filme como A Morte num Beijo, lançado em 1955, já é considerado por muitos como um neonoir, assim como A Marca da Maldade (1958), em que Orson Welles estaria tentando “requentar” o gênero.

Essa produção começou a chegar na França a partir de 1945, com a liberação do país no Pós-Guerra. Foi em 1955 que saiu o livro Panorama du Film Noir Americaine, compêndio dos críticos franceses que ajudou a consagrar o termo noir. A guerra é um ingrediente importante do estado de espírito que assola os personagens de um noir; com frequência um detetive de noir é veterano da Segunda Guerra (da mesma forma que heróis do faroeste são veteranos da Guerra Civil Americana). Fala Abraham Polonsky, diretor de Força do Mal (1948): “Massacres, campos de concentração, bombas atômicas, pessoas mortas por motivo algum - isso pode tornar qualquer pessoa um pouco pessimista”.

Daí que essa carga culposa, como o horror da guerra, dá o tom de muitas memórias carregadas do noir. Com frequência são filmes que recorrem a flashbacks, traumas e acertos de contas com o passado, além da narração em off dos protagonistas. São filmes psicologizantes também na medida em que, do fim dos anos 1930 aos anos 1950, todo mundo lia Jean-Paul Sartre e estava entendendo sobre as teorias de Sigmund Freud. Numa generalização, dá pra dizer que o noir une literatura hard boiled, aquela dos detetives calejados consagrados por Raymond Chandler e Dashiell Hammett, com existencialismo. São histórias que juntavam o absurdo da existência com a carga psicológica do passado de cada um.

A combinação do existencialismo do Pós-Guerra com o expressionismo casa temática e estética. Essa escola vem para Hollywood com diretores imigrantes (muitos fugidos do nazismo) que já faziam isso na Europa desde os anos 1920; os filmes de monstros da Universal já usavam bem o expressionismo para carregar no simbolismo, relação que o noir reaproveita. O chiaroscuro vale até nos close-ups. Os ângulos muito baixos, para aumentar as pessoas, reforçam o drama existencial, e valorizam os tetos, para denotar a claustrofobia do determinismo, das perseguições. Ângulos altos reforçam a vertigem, o desequilíbrio - escadas, terraços, janelas são recorrentes.

O passado sombrio e a rede fatalista são dois temas essenciais. O cara foge de um incidente ou de um crime vivendo nas sombras, mas o passado é tão palpável quanto o presente; o arco é confrontar o passado. A rede fatalista implica em acasos que levam ao trágico; é uma corrente inquebrável que mantém os personagens em seus papéis sociais ou “amaldiçoados” por perfis psicológicos. Boas intenções não quebram a corrente pessimista/fatalista. 

A amarração social determinista força os personagens a se corromper, perverter; o gênero como um todo é consciente desse determinismo, então o noir tende naturalmente para o político. Não por acaso muitos realizadores do noir foram parar na lista negra de comunistas e subversivos de Hollywood, como Polonsky. O noir dava emprego pra todo mundo porque era mais permissivo, mas esses filmes também deixavam falar mais abertamente de injustiça social, corrupção, violência. Não se doura a pílula, ainda que a lógica sempre seja o escuso, o proibido: diálogos sexuais de duplo sentido, intenções secretas por baixo das aparências. 

Dois tipos protagonizam: o que foge de algo e o que procura a verdade. O que procura nem sempre é detetive, embora a literatura de Chandler e Hammett tenha consagrado esses tipos. Às vezes é o homem da lei ou o criminoso, raramente é mulher. A busca é desvendar o universo sombrio de relações. O ponto de vista é sempre de quem busca, psicologizante, por isso com frequência a narração em off do protagonista. E o off também permite que a gente “compre” o olhar do protagonista mesmo quando ele é violento ou criminoso. A ideia é compartilhar da raiva dele. Já o perseguido representa bem o lado do fatalismo; ele é caçado do começo ao fim, pode cometer crimes por rebeldia contra o absurdo dos acasos. 

Do oturo lado, a femme fatale se empodera porque é uma mulher com agenda própria, ela está presa a seu papel social mas é quem melhor navega para sair dele; pode ser vista como castradora, desvirtuadora de homens bons, mas no geral faz tipos fortes que navegam à sua maneira no universo masculino para se firmarem, ou se emanciparem.

Nos EUA, a valorização do noir acompanha a criação das escolas de cinema nos anos 1960. A enciclopédia francesa sai traduzida em 1979; neonoir é um termo dos anos 1980 que já traz a discussão para todo o movimento da Nova Hollywood de revisitar o cinema clássico com um olhar maneirista. A Conversação, Chinatown e Taxi Driver são três dos filmes mais conhecidos e celebrados desse período, e todos os três cabem nos moldes do neonoir. 

O Perigoso Adeus, de Robert Altman, já faz em 1973 uma adaptação do Philip Marlowe de Chandler abolindo toda a regra das sombras, porque é um noir que se passa muito durante o dia, trazendo a ambientação para Hollywood, para salientar seu caráter de sátira. Incorporar as perversões dos bastidores do cinema se torna um tema recorrente em neonoirs, como visto em O Jogador (também de Altman), Uma Cilada para Roger Rabbit, Los Angeles: Cidade Proibida e, ainda mais recentemente, em Dois Caras Legais e O Mistério de Silver Lake.

Em outros gêneros, tratar o passado do cinema americano com uma reverência cinefílica (e às vezes crítica) também se torna recorrente a partir dos anos 1980, e com o noir não é diferente.

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