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O Segredo do Grão

Receita de cuscuz como metáfora de uma cultura árabe lutando para sobreviver na França

10.07.2008, às 17H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H37

Há filmes em que o cenário é o grande personagem, e algo assim acontece em O Segredo do Grão (La Graine et le Mulet, 2007). A história se passa na cidade de Sète, no Sul da França, às margens do Mar Mediterrâneo. Ali duas geografias se confundem, a européia e a africana, com a constância das águas que banham o porto. O choque dessas duas culturas é o que dá o tom ao filme escrito e dirigido pelo tunisiano Abdel Kechiche.

O protagonista, Slimane Beiji, de 60 anos, tenta dar um novo sentido à sua vida. Desempregado depois de uma vida inteira dedicada ao trabalho nas docas, ele vive como inquilino no hotel de sua atual companheira e regularmente visita a casa da ex-mulher com peixes para o almoço. O plano, abrir um restaurante dentro de um barco, é trabalhoso - exige licença municipal, financiamento no banco, etc. Mas a recompensa promete: os franceses de Sète poderão provar o cuscuz fenomenal que a ex-mulher de Slimane cozinha.

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O grão em questão é a semolina que serve de base às receitas daquilo que chamamos no Brasil de cuscuz marroquino. A trama do filme de Kechiche gira em torno do prato. O cuscuz é a metáfora de uma cultura, a árabe, que resiste a ser engolida no território francês. Em sua jornada algo quixotesca pelo negócio próprio, Slimane luta não só pelo seu orgulho, como luta, inconscientemente, pela sua sobrevivência.

A todo momento Kechiche reforça não apenas as diferenças entre as duas culturas (a informalidade do almoço árabe versus a burocracia do banco francês) como as intersecções. A certa altura um personagem diz que sua mãe "só fala árabe quando fica brava". Em outra, a personagem árabe precisa tirar a calça que usa na rua e botar uma saia para pedir empréstimo no banco francês. É nessas pequenas manifestações que se percebe a mistura dos povos, dos temperamentos.

A câmera do diretor de fotografia Lubomir Bakchev está sempre atrás das minúcias, filmando "a quente", sempre em close-ups ou planos-detalhes. Numa roda de amigos ou numa mesa de familiares, por exemplo, pode deixar de enquadrar a pessoa que está falando para buscar a reação nuançada de outro personagem. É uma tour de force bonita de ver. Fica parecendo que a cena toda foi rodada numa única tomada improvisada, com várias câmeras atentas às minúcias.

Ainda que esteja de olho ao que acontece ao seu redor, Kechiche redobra atenção em uma pessoa em particular. É a síntese da miscigenação a forma como se expressa (falando um idioma que mistura palavras em árabe e em francês) e como se move (com os cabelos selvagens de árabe mas gestos calculados de francesa) a enteada de Slimane, Rym. A atuação da jovem Hafsia Herzi, premiada no Festival de Veneza, é o ponto alto de O Segredo do Grão.

É ela a verdadeira recompensa de Slimane, a sua certeza de sobrevivência. O final do filme, com encontros beirando o surreal entre velhos e jovens, dá a sensação de que um ciclo se encerra, uma transformação se completa. Mas em Rym há a certeza de que nessa passagem uma cultura não se perde.

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