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Maldito Coração | Crítica

Maldito coração

19.01.2006, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H19
Maldito coração
The Heart is Deceitful above all Things
EUA, 2004
Drama - 97 minutos

Direção: Asia Argento
Roteiro: Asia Argento

Elenco: Asia Argento, Dylan Sprouse, Cole Sprouse, Peter Fonda, Ben Foster, Marilyn Manson, Ornella Muti, Kip Pardue, Michael Pitt, John Robinson, Winona Ryder, Jeremy Sisto, Melanie Sprouse, Hasil Adkins, Tim Armstrong, Jimmy Bennett, Willa Holland, Jeremy Renner.

Asia Argento poderia ter uma carreira confortável só por herdar o nome de um dos mais notáveis diretores de terror do planeta, o lendário Dario Argento. Ele é um dos criadores do giallo - em italiano, amarelo, a cor da capa dos livros de mistério por lá, que têm uma enorme ênfase em crimes bizarros com visual barroco e perversão sexual. Da mesma forma que o Western Spaghetti de Sergio Leone brincava com os tradicionais westerns americanos de John Ford, o giallo de Argento flerta com os filmes de suspense do mestre Alfred Hitchcock.

Asia começou a sua carreira artística substituindo sua mãe, Daria Nicolodi, esposa e uma espécie de musa das idéias sanguinolentas de Dario em suas fitas de terror. Como atriz, chegou a recusar papéis em 007 - O Mundo Não é o Bastante e Missão: Impossível 2 para seguir uma carreira independente das concessões do sistema. E segundo ela, a bobagem Triplo X foi uma experiência, uma forma de aprender como funcionava o esquema de superprodução nos Estados Unidos. Mas ela ainda disse na época que poderia voltar a fazer filmes-pipoca contanto que o diretor ou o companheiro de cena a interessassem.

Mas sempre inquieta e assombrada por seus próprios demônios, preferiu seguir também a carreira de diretora. Depois de ter dirigido alguns trabalhos na Itália e curtas, ela fez seu primeiro longa-metragem, Scarlet Diva (2002). Uma produção que até parecia ser autobiográfica, por retratar uma atriz completamente ensandecida por sexo e drogas. Da mesma forma que na vida real, a personagem ficava grávida de um músico e aprontava muito. Mas em vez de mostrar uma mulher vítima do meio em que foi criada, ela nos apresentou uma figura dramática auto-destrutiva e detestável. Infelizmente o público ficou mais interessado na polêmica e nas loucuras, do que os planos ousados, a câmera voyeur e a forma simbólica que o filme foi realizado.

Agora nos chega Maldito coração (The heart is deceitful above all things, 2004), mais um filme que vem amparado na descoberta de que o livro em que foi baseado não contava uma história verdadeira, como prometia. Um dos fatos mais comentados nesse começo de ano, é que J.T. Leroy na verdade é uma mulher e não o homem que foi sodomizado e teve que se prostituir desde a infância para sobreviver. Polêmicas à parte, isso não diminui em nada o filme de Asia. Pelo contrário, ela vai fundo nessa viagem ao inferno que só poderia ter sido realizada por alguém que conhecesse esse universo tão asqueroso, mas que consegue atrair a atenção do público por seu conteúdo profano e repugnante.

O nome do filme original foi tirado de uma passagem da Bíblia, Jeremias capitulo 17, versículos 9 e 10: "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; Quem o conhecerá? Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos; e isso para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas ações". Daí, já se percebe quais eram as intenções de Asia. Tentar mostrar que até em atos asquerosos, pode existir amor, e ainda questionar se a existência desse sentimento pode perdoar as atrocidades cometidas.

Está no sangue

O estilo de filmar de Asia é muito interessante. A cada momento aparece uma metáfora visual na construção do enredo. Isso colabora na criação de um mundo surrado e reprimido. As imagens rebuscadas e repletas de signos pontuam as mudanças de ritmo do roteiro. Esses recursos são necessários para suavizar uma história polêmica.

Se o livro no qual se baseia era composto por 11 histórias, o roteiro escrito pela própria diretora amarra todas elas muito bem, mostrando a infância do narrador com sua mãe problemática e seus avós religiosos fanáticos. No filme, Jeremiah é filho de Sarah, menina rebelde que foi expulsa de casa aos 15 anos. O garoto acaba indo parar num orfanato. Aos 7 anos ele é resgatado pela mãe, que não tinha mudado em nada a sua maneira de ser. A partir daí, ele entra em contato com o mundo apocalíptico dela: drogas, prostituição e abusos de todas as formas e maneiras, chegando até a ser violentado pelo namorado da mãe e travestido de menina para se passar como sua irmã.

Durante a trama, Jeremiah é interpretado por três atores durante a projeção. Aos 7 anos por Jimmy Bennett e aos 10 anos pelos gêmeos Dylan e Cole Sprouse. Vale ressaltar o trabalho magnífico de Asia com os três garotos que interpretam Jeremiah, principalmente os gêmeos, que o público só percebe que eram dois atores ao final da sessão, quando começam os créditos.

Asia interpreta de forma realista Sarah, a mãe. Em certos momentos ela parece um clone da roqueira e atriz Courtney Love, esposa do falecido Kurt Cobain, do Nirvana. Os outros personagens são preenchidos por vários rostos conhecidos pelo público. Certas escolhas foram ótimas, devido ao assunto tratado. Ver Winona Ryder, depois dos problemas judiciais, no papel de uma terapeuta pública maluca é, no mínimo, irônico. Peter Fonda teve seus motivos para entrar no projeto. Ele lidera uma instituição que ajuda crianças molestadas. O cara foi hippie e contestador nos anos 1970 e participou do road movie Sem destino (1969). Assim, vê-lo interpretar o avô religioso é inusitado. Completando o elenco temos ainda Ornella Mutti no papel da avó e as participações de Jeremy Sisto, Jeremy Renner, Matt Shulze, Ben Foster, Kip Pardue, e do roqueiro Marilyn Manson como os homens na vida de Sarah. Michael Pitt também faz uma pequena, mas boa participação. A ótima trilha sonora é composta por Billy Corgan, ex-líder do Smashing Pumpkins.

Para muitos o filme será encarado como um desfile de grosserias e abusos inimagináveis a uma criança. Mas quem tiver o cuidado de ir além, perceberá que todos os personagens não são monstros, mas sim adultos perdidos, que precisam de ajuda médica. Seus atos são cometidos por doença e não maldade. Asia está soberba no papel de Sarah. Seu amor por Jeremiah é o ponto alto do filme. Um sentimento que será o combustível de tanta maldade. Vemos isso numa cena em que Sarah desmaia num jardim. Jeremiah a abraça e diz que irá protegê-la. Exausta, Sarah o beija e aceita esse carinho. A imagem é ao mesmo tempo afetuosa e aterradora. É um momento de conexão entre mãe e filho, mas sabemos que Sarah não irá se modificar. Eles têm uma relação simbiótica que é tudo, menos saudável, mas é a única que possuem.

O talento de Asia é ainda maior na direção. Ela conta a história com metáforas, simbolismos e uma ousada edição. Por nenhum instante ela apela para imagens nojentas, mas mesmo assim ficamos nauseados com as situações apresentadas. É um grande soco na boca do estômago, mas realizado com muita maturidade. Asia ainda abusa das gelatinas coloridas e cria uma atmosfera rústica com a câmera de Eric Alan Edwards. Em alguns momentos traumáticos ela usa dois passarinhos animados, numa forma de homenagear Terror na Ópera, uma das obras-primas de seu pai. Ao mesmo tempo é uma substituição empírica dos brinquedos que Jeremiah nunca teve ou terá.

Maldito coração irá despertar reações de amor e ódio por seu conteúdo perverso. Mas será impossível não refletir ou debater sobre o filme. Seja pela farsa criada em torno de J.T. Leroy ou pelo brilhante trabalho de direção de Asia Argento.

Nota do Crítico
Excelente!
Maldito Coração
The Heart is Deceitful Above All Things
Maldito Coração
The Heart is Deceitful Above All Things

Ano: 2004

País: EUA/Reino Unido

Classificação: 18 anos

Duração: 97 min

Direção: Asia Argento

Roteiro: Alessandro Magania

Elenco: Asia Argento, Jimmy Bennett, Jeremy Renner, Winona Ryder, Ornella Muti, Peter Fonda, Dylan Sprouse, Kara Kemp, Cole Sprouse, Kevin Pardue, Ben Foster, Matt Schulze, Jeremy Sisto, Michael Pitt, Brent Almond, David Dwyer, David Brian Alley

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